"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A CONSTRUÇÃO TEOLÓGICA DO CONCEITO DE DEUS DESDE OS PATRIARCAS ATÉ A LIGA TRIBAL (JOSUÉ 24) E AS IMPLICAÇÕES ECUMÊNICAS PARA HOJE

(Handall Fabrício Martins)

A religião de Israel passou por um longo e complexo processo de evolução: isso é consenso entre a grande maioria dos teólogos contemporâneos. Ora, tal como todo aspecto cultural de um povo e suas contingências inerentes, a religião do antigo Israel tem que ser inserida no conjunto maior que abarca as religiões do Antigo Oriente Próximo, no que diz respeito a suas aproximações e distinções. Só esse estudo mais amplo, comparativo entre os diferentes povos da época, pode tornar compreensíveis muitos aspectos que têm sido erroneamente interpretados e teologicamente deslocados de seu lugar original. O que isso teria a nos dizer? O que teríamos a aprender com o fato de ter havido contribuições de outros povos na formação e evolução do conceito de Deus no incipiente Israel? Qual a importância e quais as consequências de se considerar o javismo uma evolução (e não uma revolução) no contexto das religiões que lhe foram contemporâneas? Qual ou quais teologias ou ideologias serviram de sustentação à idéia desenvolvida em Israel de que ele era não o primogênito, mas o unigênito de Iahweh? Qual tem sido o respaldo para se considerar o Cristo propriedade única de um ou de outro grupo religioso, como um bem inalienável e de posse intransferível? Deve o cristianismo ser sectário ou agregador? Os desafios que se têm apresentado são grandes e variados, e as respostas que têm sido dadas, infelizmente, têm falhado, e muito, na consecução de pelo menos dois dos itens da oração sacerdotal de Jesus em João 16 e que refletem claramente o desejo do Mestre: o de que fôssemos um (como ele e o Pai o eram) e o de que nos amássemos uns aos outros (sinal que serviria de distintivo, de emblema para os cristãos).
De início, um fato que merece ser salientado – considerando a importância capital da religião judaica no surgimento do cristianismo e a continuidade entre o Primeiro e o Segundo Testamentos – é o de só se poder falar em judaísmo de fato a partir do final do período exílico e início do pós-exílico. Partindo dessa premissa, qual era, então, a religião praticada por Abraão, considerado o pai da fé? E a de Jacó, também chamado Israel? A quem os “filhos de Israel” clamaram quando da escravidão no Egito? Qual seria a prática religiosa de Moisés antes de ter aquela experiência singular com Iahweh e de ser por ele vocacionado? Teve a vivência anterior de Moisés algum reflexo na sua interpretação posterior de Deus? Qual o papel de Jetro, o midianita, sogro de Moisés, no entendimento que este teve acerca de Deus? Ao que parece, a menção da existência de Jetro por si só é um testemunho da própria Bíblia de que Iahweh já se fizera conhecido desde outrora, pois já havia se revelado antes de fazê-lo a Moisés. Mais: o que significa a narrativa do capítulo 24 de Josué, no qual ele dá àquele misto de povo um ultimato, a fim de que abandonasse os outros deuses e seguisse unicamente a Iahweh? Nesse sentido, a conclusão necessária a que se deve chegar parece ser a de que, na formação do javismo e na própria identidade cultural do Israel tribal concorreram diversas tradições, oriundas de grupos étnicos distintos e absorvidas em momentos diferentes da história desse pequeno povo chamado Israel. Aqui, é bom destacar, como já foi dito, as marcas que os exílios assírio e babilônico imprimiram na religião e em toda a cultura judaica, além das influências persa, macedônica e, por fim, greco-romana.
Tomando de empréstimo as palavras do escritor da Epístola aos Hebreus – “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e será eternamente” – não é muito difícil perceber que, de fato, Deus sempre foi o mesmo e sempre se revelou ao homem: o que mudou foi a maneira de esse homem, destinatário da revelação, receber e (re-) interpretar aquilo que de si mesmo Deus fazia conhecido e que, para nós, cristãos, veio a culminar no evento Cristo. Não só o entendimento acerca de Deus mudou, mas também o do próprio homem sobre si mesmo. Pudemos conhecer melhor a Deus e a nós mesmos: Cristo nos revelou o Pai e nos mostrou quem somos, pois nele se encontravam a plenitude da divindade e a perfeita humanidade. Em Cristo, percebemos que: não é possível pôr Deus numa caixa e “domesticá-lo”, colocando nele os cabrestos que as nossas limitações humanas nos impõem, restringindo seu agir, demarcando os termos nos quais ele pode atuar (pois Deus é Espírito – sopra onde quer; ninguém sabe de onde vem, nem para onde vai); a graça de Deus não encontra fronteiras e é incompreensível ao homem, sendo loucura e escândalo (aliás, romper com os limites do “racional” e escandalizar-nos é algo peculiar à ação divina); Deus é sempre surpreendente e imprevisível; o homem, seja quem for e onde estiver, é alvo da misericórdia e do amor divinos, bastando que se reconheça doente e pecador. Logo, emoldurar Deus, o alcance do seu agir e consequências, é-nos impossível, ainda que sempre de novo queiramos fazê-lo.
É difícil ao homem, manchado como é pelo pecado, limitado pela finitude, compreender essas verdades sem que elas lhe sejam endereçadas do alto, reveladas pelo Pai das luzes. E parece ter sido isso o que de mais lindo aconteceu por ocasião da Reforma Protestante, qual seja o reencontro de e com a graça de Deus. Lutero disse aos seus contemporâneos coisas inconcebíveis para a tradição religiosa da época, como: “há salvação fora da Igreja, mas não fora de Cristo”, ou ainda: “se o acusador lançar-lhe o pecado na face, acusando-o, responda que sabe que é pecador, mas também diga que você é de Cristo, e que onde Cristo estiver lá você estará, junto dele”. O que na época causou frenesi, hoje nos parece lugar comum. Mas, o que dizer a respeito da tese recente do teólogo (católico, quem diria?) Karl Rahner, a da existência de “cristãos anônimos” e do agir salvífico de Deus divorciado, inclusive, da própria igreja visível? E quanto ao pensamento de M. Amaladoss de que o Cristo universal é muito maior do que o Jesus humano, e de que este limitaria a ação daquele? O que hoje causa perplexidade, enauseia até, amanhã pode ser considerado “ponto pacífico”. Em qualquer caso, o que se percebe são apenas uns lampejos acerca das possíveis manifestações da infinita graça de Deus. Infelizmente, o que tem sido regra entre as várias denominações cristãs é um indigesto sectarismo, e que tem feito cada uma delas parecer um gueto, salvo poucas exceções.
Os diálogos ecumênico e inter-religioso não se apresentam, então, como uma possibilidade, mas como uma necessidade. Senão, olhemos todos os estágios pelos quais passaram a religião judaica e seu filho mais velho, o cristianismo, além de todas as influências que receberam ao longo de milênios de existência. Lembremos, ainda, de Melquisedeque, sacerdote de El Shaday, cuja origem ninguém sabe e que, novamente pelo autor da carta aos Hebreus, teve a sua ordem atribuída ao próprio Cristo; da prostituta cananéia Raabe e de Rute, a estrangeira midianita, que foram colocadas, Deus sabe por que, na genealogia de Davi e de Cristo, descendência de Judá. Ora, a verdade do Evangelho não é patrimônio exclusivo do cristianismo, mas do próprio Deus, que se revela a quem quiser, onde lhe aprouver e como bem lhe agradar – “os pensamentos de Deus são mais altos que os vossos pensamentos, e seus caminhos mais altos que os vossos caminhos”. O nosso juízo, ao contrário do de Deus, é parcial, não isento; viciado, portanto. Por isso mesmo, só ele, o Deus único, pode julgar quem quer que seja: vivos ou mortos, convencionais ou heterodoxos, professos ou não declarados, anônimos ou célebres.


quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Sobre ter e ser...

A IDOLATRIA DO MERCADO E OS RIVAIS DE DEUS

(Handall Fabrício Martins)

Os principais problemas concretos denunciados pelos profetas do AT eram:
a) a má administração da justiça, fruto da corrupção e ganância;
b) a voracidade dos comerciantes, que buscavam cada vez maiores lucros e a qualquer custo;
c) a escravidão, a qual Amós julga injustificável em qualquer situação e Jeremias só admite no caso daquele que se vendeu como escravo, mas que deve ser posto livre ao fim de sete anos, como manda a lei;
d) o latifundiarismo, o acúmulo ímpio de terras;
e) o salário, que por vezes não é pago, ou é fraudado pelos patrões;
f) luxo, riqueza e esbanjamento, conseguido com a espoliação dos pobres.

Os profetas perceberam que o dinheiro havia se tornado um ídolo – rival de Deus – e a busca desenfreada pelo enriquecimento suplantava qualquer possibilidade de se praticar a justiça e o direito. Pelo contrário, as leis eram manipuladas e torcidas a fim de se beneficiarem os ricos, mediante o pagamento de suborno. Ora, se o primeiro dos dez mandamentos já estava esquecido – Deus havia sido substituído por Mamon –, os demais, principalmente os que se referem a não matar, não furtar, não cometer perjúrio e não cobiçar o que era do próximo, deixaram de ter qualquer valor. O “novo decálogo” poderia, quem sabe, ser assim formulado:
1) Eu, Mamon, sou o deus que te livrou da pobreza e da humilhação; podes ter quantos deuses desejares, desde que eles não te exijam o desapego ao dinheiro e nem que o gastes fazendo o bem a outros além de a ti mesmo;
2) Não tenhas pudores em te esqueceres de Javé, pois eu, Mamon, sou suficientemente poderoso para dar-te o que quiseres, riquezas sem medida e sem que te preocupes em teres quaisquer escrúpulos ou mesmo de seres fiel a mim;
3) Podes e deves ostentar a tua riqueza, inclusive humilhando o pobre e disputando com outros sobre quem é o mais rico e influente;
4) Nunca te permitirás o descanso, até o dia em que te tornares consideravelmente rico para folgares todo o tempo, enquanto teus servos e escravos trabalharão incessantemente a fim de aumentarem os teus bens;
5) No dia em que teu pai e tua mãe se tornarem velhos e um estorvo para ti, não hesites em abandoná-los em qualquer sarjeta, pois, do contrário, ser-te-iam um fardo pesado, atrapalhando-te em gozares com teus amigos e mulheres dos prazeres que te concedi;
6) No dia em que te enamorares da mulher do teu vizinho, sente-te à vontade para a possuíres, inclusive à força; se for necessário matar o teu vizinho para coabitares com sua mulher, faze-o sem remorso, pois eu, Mamon, compreenderei que o fizeste com o único intuito de saciares a tua cobiça e o teu egoísmo;
7) Mata todo aquele que te atrapalhar em realizares teus desejos, mesmo o mais fútil; eu, Mamon, me agrado quando um de meus servos age inescrupulosamente a fim de satisfazer seus próprios interesses;
8) Apenas com trabalho honesto nunca te farás rico; portanto, podes corromper as autoridades, te apropriar do que não é teu, tomar qualquer bem ou propriedade à força, quanto quiseres, pois isso me agrada;
9) Quando fores a alguma demanda contra o teu próximo, podes mentir o quanto for necessário para te escusares; mas não te esqueças de subornar previamente os juízes que decidirão a questão, para que te livrem e saibam que podem sempre esperar de ti outros subornos, caso venhas a ter que te apresentares diante deles novamente noutra causa;
10) Não sossegarás enquanto não tomares do teu próximo tudo o que ele tem, até vê-lo na miséria; não ponhas limite aos teus desejos; de tudo o que se agradarem os teus olhos apossa-te: vai e toma para ti, pois é teu.

“[...] Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro, por cujo desenfreado desejo alguns se afastaram da fé, e a si mesmos se afligem com múltiplos tormentos” (1 Tm 6.10).

A denúncia profética parece adequar-se perfeitamente a todos os males sociais produzidos pelo capitalismo:
a) leis, inclusive trabalhistas, que beneficiam mais os grandes conglomerados econômicos do que os trabalhadores;
b) venda de sentenças;
c) vazamento de informações privilegiadas;
d) a impunidade dos “ladrões de colarinho branco” e a prisão de ladrões de galinha;
e) mensalões;
f) interferência política mútua entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, em vez de independência e autonomia entre eles;
g) taxas de juros aviltantes;
h) lucros exorbitantes nas vendas de produtos;
i) carga tributária absurda;
j) jornadas de trabalho desumanas;
I) má vontade na resolução do problema da terra (reforma agrária);
m) baixos salários, que não são suficientes para atender as necessidades mais básicas das famílias;
n) enorme desigualdade na distribuição de renda, com um abismo separando ricos e pobres, bem como a concentração da riqueza cada vez mais nas mãos de uns poucos.

Os exemplos se multiplicariam, mas parece que os acima citados são o bastante a propósito do que se gostaria de evidenciar: o que Franz Hinkelammert e Hugo Assmann chamaram de “A idolatria do Mercado”. Segundo esses autores, tem-se optado pelos investidores e não pelos pobres, à custa da miséria e do sacrifício, literalmente, destes últimos. Para eles, o que presenciamos hoje é uma gigantesca luta de deuses – rivais de Deus – que têm ocupado o lugar do Deus verdadeiro.
Será que devemos nos conformar com a idolatria do mercado, com o consumismo irracional, nos entregando a essa lógica econômica que supervaloriza as mercadorias, o dinheiro e o capital, em detrimento da dignidade e da vida da pessoa humana? Existem muitas ideologias e teologias que justificam essa entrega, dando a entender que o sistema econômico atual, com todas as suas terríveis conseqüências, é o jeito normal de se viver. Mas também existem arautos proféticos que se levantam contra a barbárie promovida pelo capitalismo, erguendo novamente a bandeira da solidariedade e o altruísmo entre os homens, a despeito do individualismo e da competitividade que o mercado tenta impor, a qualquer preço. De que lado nós estamos?


Estatuto dos Poetas

(Handall Fabrício Martins)


Na tentativa, às vezes, desenfreada; na busca, não raro, insana
de dizer de maneira diferente ou com vocabulário rebuscado
(originalidade tardia ou plágio permitido)
tudo o que outros fazem ou pensam no cotidiano,
sempre, de novo, poetam.
[aliás, esse estatuto poderia ser o de qualquer observador ou analista da realidade. basta substituir o "poetam" por, por exemplo: "teologam", "antropologam", "sociologam", "psicologam", "filosofam", "historiografam", "biologizam", "contabilizam", "juridicizam", "economizam" (esta é boa), "computam", informatizam", "matematizam", "algoritmizam", "musicalizam", "pedagogizam", "comunicam", etc., etc., etc.,...]