"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

terça-feira, 27 de julho de 2010

Onde está a verdadeira crise da Igreja

Leonardo Boff


A crise da pedofilia na Igreja romano-católica não é nada em comparação à verdadeira crise, essa sim, estrutural, crise que concerne à sua institucionalidade histórico-social. Não me refiro à Igreja como comunidade de fiéis. Esta continua viva apesar da crise, se organizando de forma comunitária e não piramidal como a Igreja da Tradição. A questão é: que tipo de instituição representa esta comunidade de fé? Como se organiza? Atualmente, ela comparece como defasada da cultura contemporânea e em forte contradição com o sonho de Jesus, percebida pelas comunidades que se acostumaram a ler os envangelhos em grupos e então a fazer a suas analises.

Dito de forma breve mas não caricata: a instituição-Igreja se sustenta sobre duas formas de poder: um secular, organizativo, jurídico e hierárquico, herdado do Império Romano e outro espiritual, assentado sobre a teologia política de Santo Agostinho acerca da Cidade de Deus que ele identifica com a instituição-Igreja. Em sua montagem concreta não é tanto o Evangelho ou a fé cristã que contam, mas estes poderes, considerados como um único "poder sagrado" (potestas sacra) também na forma de sua plenitude (plenitudo potestatis) no estilo imperial romano da monarquia absolutista. César detinha todo o poder: político, militar, jurídico e religioso. O Papa, semelhantemente detém igual poder: "ordinário, supremo, pleno, imediato e universal" (canon 331), atributos só cabíveis a Deus. O Papa institucionalmente é um César batizado.

Esse poder que estrutura a instituição-Igreja foi se constituindo a partir do ano 325 com Imperador Constantino e oficialmente instaurado em 392 quando Teodósio, o Grande (+395) impôs o cristianismo como a única religião de Estado. A instituição-Igreja assumiu esse poder com todos os títulos, honrarias e hábitos palacianos que perduram até os dias de hoje no estilo de vida dos bispos, cardeais e papas.

Esse poder ganhou, com o tempo, formas cada vez mais totalitárias e até tirânicas, especialmente a partir do Papa Gregório VII que em 1075 se autoproclamou senhor absoluto da Igreja e do mundo. Radicalizando, Inocêncio III (+1216) se apresentou não apenas como sucessor de Pedro mas como representante de Cristo. Seu sucessor, Inocêncio IV(+1254), deu o último passo e se anunciou como representante de Deus e por isso senhor universal da Terra que podia distribuir porções dela a quem quisesse, como depois foi feito aos reis de Espanha e Portugal no século XVI. Só faltava proclamar Papa infalível, o que ocorreu sob Pio IX em 1870. O circulo se fechou.

Ora, este tipo de instituição encontra-se hoje num profundo processo de erosão. Depois de mais de 40 anos de continuado estudo e meditação sobre a Igreja (meu campo de especialização) suspeito que chegou o momento crucial para ela: ou corajosamente muda e assim encontra seu lugar no mundo moderno e metaboliza o processo acelerado de globalização e ai terá muito a dizer, ou se condena a ser uma seita ocidental, cada vez mais irrelevante e esvaziada de fiéis. O projeto atual de Bento XVI de "reconquista" da visibilidade da Igreja contra o mundo secular é fadado ao fracasso se não proceder a uma mudança institucional. As pessoas de hoje não aceitam mais uma Igreja autoritária e triste como se fosse ao próprio enterro. Mas estão abertas à saga de Jesus, ao seu sonho e aos valores evangélicos.

Esse crescendo na vontade de poder, imaginado ilusoriamente vindo diretamente de Cristo, impede qualquer reforma da instituição-Igreja, pois tudo nela seria divino e intocável. Realiza-se plenamente a lógica do poder, descrita por Hobbes em seu Leviatã: "o poder quer sempre mais poder, porque não se pode garantir o poder senão buscando mais e mais poder". Uma instituição-Igreja que busca assim um poder absoluto fecha as portas ao amor e se distancia dos sem-poder, dos pobres. A instituição perde o rosto humano e se faz insensível aos problemas existenciais, como da família e da sexualidade.

O Concílio Vaticano II (1965) procurou curar este desvio pelos conceitos de Povo de Deus, de comunhão e de governo colegial. Mas o intento foi abortado por João Paulo II e Bento XVI que voltaram a insistir no centralismo romano, agravando a crise.

O que um dia foi construído pode ser num outro, desconstruído. A fé cristã possui força intrínseca de nesta fase planetária encontrar uma forma institucional mais adequada ao sonho de seu Fundador e mais consentânea ao nosso tempo.


sexta-feira, 23 de julho de 2010

QUANDO A BÍBLIA FAZ MAL

Caio Fábio D'Araújo Filho


Sempre que se obedece à Escritura por causa dela mesma, se está cedendo à tentação do Diabo!

Não é de estranhar, portanto, que o pai da fé, Abraão, tenha vivido pela fé na Palavra antes de haver Escritura, mostrando-nos assim, que a Palavra precede a Escritura.

A fé vem pelo ouvir-escutar-crer-render-se à Palavra.

E a pregação só é Palavra se o Espírito estiver soprando. Do contrário, é só prega-ação!

E a pregação que não é Palavra é apenas estudo bíblico, podendo gerar mais doença do que libertação.

A grande tentação é fazer a Escritura se passar por Palavra. As Escrituras se iluminam como a Palavra somente quando aquele que a busca tem como motivação o encontro com a Palavra de Deus. Ou quando o Deus da Palavra fala antes ao coração!

A Bíblia é o Livro.

A Escritura é o Texto.

A Palavra É!

“Escritura” sem Deus é apenas um texto religioso aberto à toda sorte de manipulações!

No genuíno encontro com Deus e com a Palavra, a Escritura vem depois.

Sim! A Escritura vem bem depois!

O processo começa com a testificação do Espírito — pelo testemunho da Palavra de que somos filhos de Deus (Atos 16:14; Romanos 8:14-17; 10:17).

Depois, nos aproximamos da Escritura, pela Palavra. Então, salvos da “Escritura” pela Palavra, estudamo-la buscando não o seu poder ou o seu saber, mas a “revelação” imponderável acerca da natureza e da vontade de Deus, que daquele “encontro”—entre a Escritura, a Palavra e o Espírito — pode proceder.

Para tanto, veja João 5:39-40, onde o exame das Escrituras só se atualiza como vida se acontecer em Cristo.

Um exemplo do que digo é a tentação de pular do Pináculo do Templo. Tinha uma “base bíblica”— se levarmos em conta a Escritura como sendo a Palavra. Mas o que Jesus identificou ali foi a Escritura sem a Palavra.

Um ser pré-disposto ao sucesso teria pulado do Pináculo em “obediência” à Escritura e à sua literalidade, violando, para sua própria morte, a Palavra.

Sim! Estava escrito.

Porém, não estava dito!

Ora, é em cima do que está escrito mas não está dito, que não só cometemos “suicídios”, mas também “matamos” aqueles que se fazem “discípulos” de nossa arrogância, os quais, motivados pelas nossas falsas promessas, atiram-se do Pináculo do Templo abaixo.

E é também por causa desse tipo de obediência à letra da Escritura que nós morremos.

A letra mata!

Olhamos em volta e vemos o Livro de Deus em todas as prate-Lei-ras. Vemos o povo carregando-o sob o braço e percebemos que eles são apenas “consumidores de Bíblias”.

Vemos seus lideres e os percebemos, muitas vezes, apenas como “mercadejadores” de Bíblias e dos “esquemas” e “programas” que se derivam do marketing que oferece e vende sucesso em “pacotes em nome de Jesus”.

Sim! E isso tudo não porque nos faltem Bíblias e muito menos acesso à Palavra.

O que nos falta é buscar a Deus por Deus (sic!).

O que nos falta é sermos filhos amados de Deus não porque isto nos dá status Moral sobre uma sociedade que não é mais perdida que a própria “igreja”, coletivamente falando, é claro!

O que nos falta é a alegria da salvação, sendo essa alegria apenas fruto de gratidão.

É somente na Graça que a leitura da Bíblia tem a Palavra para o coração humano. Sem a iluminação do Espírito a Bíblia é apenas o mais fascinantes de todos os best-sellers.


segunda-feira, 12 de julho de 2010

Avidez (soneto)

Handall Fabrício Martins


Quando se sabe que a alegria existe,
a mediocridade não satisfaz:
De cabeça erguida, armas em riste,
da felicidade se vai atrás.

Às vezes, a inclinação pra ser triste
seduz até aquele que é capaz -
- "eis o fim" (...); uma voz, então, diz: "Fiz-te!
Eu te darei a luz e a minha paz."

E a vida, mal vivida, se renova,
obtém-se da existência o sentido,
chega-se à notoriedade mais nova:

Ainda que se pense estar perdido,
não se recolhe ao pó, à sua cova,
um homem que nunca tenha vivido.


sexta-feira, 9 de julho de 2010

Transmutação (soneto)

Handall Fabrício Martins


Falar d'Ele, co'exata maestria,
cabe a poucos, donos de exímia arte;
vê-Lo raiar, tal qual a luz do dia,
quem viu, sem ter posto a razão à parte?

Trevas mui densas dentro em mim havia -
compunha um argumento malas-arte.
Então, sem mais, a chama luzidia
em mim ardeu e me deixou destarte:

Sem palavras, ainda que as requeira;
extático, e envolto numa nuvem
de paz, e de alegria verdadeira. (...)

E hoje, o que eu era desconheço;
bem-estar meus sentidos me produzem. (...)
A tristeza mudou-se de endereço...

terça-feira, 6 de julho de 2010

A TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA: ANÁLISE DE CONJUNTURA

Handall Fabrício Martins

(final)


Teologia da libertação: algumas conclusões

A reflexão teológica explícita só pode ser feita em mutirão. É produzida de um modo novo, em geral extra-acadêmico, militante e popular. A totalidade da Bíblia é interpelada segundo a ótica do oprimido. A chave hermenêutica é cristológica. Para ser genuína, a fé tem de estar comprometida com o reino de Deus. O exemplo vivo são a obra e o sacrifício de Cristo. A ressurreição de Jesus tem um significado absolutamente libertador. Transformando o não-homem em homem pleno, e o homem pleno em homem novo, o cristianismo já não pode mais ser chamado de “ópio do povo”. A salvação eterna, ofertada por Deus, passa pelas libertações históricas. Deus é reapresentado com uma nova face: o libertador dos oprimidos e dos humilhados.

O povo de Deus sempre foi solidário com relação às angústias e as esperanças dos oprimidos. Através da libertação, surge a imagem do Deus revelado em Jesus Cristo. Deus quer sustentar o pobre e oprimido. O verdadeiro culto a Deus tem de vir acompanhado de justiça. O cristão enxerga no ser humano que está distante um próximo, e, no que está próximo, um irmão. As pessoas serão julgadas por suas atitudes de aceitação ou rejeição dos pobres (Mt 25.31-46). O cristão tem de estar aberto para Deus e se solidarizar com seu semelhante. O cristão deve servir de um modo desinteressado aos outros.

A fé cristã também precisa ter um fator de transformação da sociedade. A todos os que são discriminados deve ser anunciado que Deus os ama de modo preferencial, independente de sua situação moral ou pessoal. Deus nunca quis a injustiça e a pobreza. Os que são carentes dos recursos necessários à sua subsistência vivem nessa situação porque foram espoliados por um processo de exploração do trabalho. Quem que se torna disponível para Deus também se torna um instrumento do Reino. A solidariedade o leva a lutar contra a pobreza injusta. “A teologia da libertação é resposta à problemática pastoral da Igreja, especialmente colocada no contexto latino-americano, em que a luta pela libertação constitui uma exigência fundamental do Evangelho e uma antecipação do Reino de Deus” (CATÃO, apud GUIMARÃES, p.1).

Os conceitos teológicos não podem ser entendidos de forma reducionista. A salvação eterna, ofertada por Deus, deve passar por processos históricos de salvação. A verdadeira evangelização se empenha para que os pobres se tornem, de fato, Igreja. A comunhão é então redescoberta como o valor teológico estruturante. A Igreja transforma-se, assim, na comunidade dos fiéis que convivem em relações fraternas.

Se a teologia tradicional lançou mão de Platão e Aristóteles, então a teologia da libertação pode utilizar a análise marxista a fim de interpretar a realidade latino-americana. Não há neutralidade política. Quem se apresentar com a pretensão de neutralidade política, já estará concordando com a situação vigente; ou seja, estará apoiando a opressão instalada na sociedade. A função da Igreja não é definir os contornos da salvação, pois esta não é quantitativa (quem será salvo); é, antes, qualitativa (qual é a natureza da salvação).

Optando pelo caminho mais difícil, a teologia da libertação exige uma verdadeira conversão. Uma pessoa só consegue entendê-la quando ela compreende e participa ativamente no processo concreto e histórico da libertação dos oprimidos. Partindo da Bíblia, compreender significa amar e deixar-se envolver totalmente. Sem o compromisso com os oprimidos, a teologia acaba se tornando simples literatura. Deve se estabelecer uma ligação viva com a prática viva.

Principais contribuições da teologia da libertação: conscientização política; apropriação da convicção de que para ser dono da história futura, é preciso conhecer a história passada; entendimento de que “a salvação de Deus não é um simples estado d’alma, nem, muito menos, uma salvação após a morte, mas uma libertação histórica, a ser desfrutada, aqui e agora, pela pessoa e pela sociedade” (GUIMARÃES, apud CATÃO, p.2).


Teologia da libertação: consolidação (1979-1988)

As punições impingidas pelo Vaticano a Leonardo Boff e Gustavo Gutierrez demonstram a oposição da cúpula católica à teologia da libertação. Em 1980, Oscar Romero, Arcebispo de San Salvador, é assassinado. Um teólogo católico do IRD declarou: “Os acontecimentos no Irã e na Nicarágua começaram a mostrar aos analistas políticos que há um perigo, quando fazem seus cálculos, de omitir o fator religioso, especificamente as idéias dos teólogos.” Em 1982, os assessores do presidente Reagan elaboram o “Documento de Santa Fé”, declarando que “a política externa americana deve começar a contra-atacar (e não apenas a reagir contra) a teologia da libertação”. Perante a opinião pública mundial, esse documento acabou por promover a teologia da libertação.

Em 1984, o Vaticano tornou pública a “Instrução sobre Certos Aspectos da Teologia da Libertação”. Esse documento reitera a “opção preferencial pelos pobres” e insiste em que os cristãos “se tornem envolvidos na luta por justiça, liberdade e dignidade humana”. Porém, adverte que a Igreja não deve ser negligente quanto à libertação do pecado. E lembra que milhões de pessoas tiveram suas liberdades básicas cerceadas por causa de “regimes totalitários e ateístas que chegaram ao poder por meios revolucionários e violentos, precisamente em nome da libertação do povo”. E o documento arremata: “A luta de classes como uma estrada em direção a uma sociedade sem classes é um mito que retarda as reformas e agrava a pobreza e a injustiça.”


Teologia da libertação: revisão, perspectivas e avanços (1989-)

Para João Batista Libânio, em termos políticos,

[...] os acontecimentos que mais profundamente tocaram à TdL foram a derrota do Sandinismo na Nicarágua e a queda do socialismo no Leste Europeu. A vitória sandinista tinha significado, de certa maneira, um traço de esperança e de concretização de muitas das reflexões que se faziam na TdL. Tinha sido uma revolução profundamente popular, libertária, em que a fé cristã desempenhara papel relevante. E tal fora possível porque já se tinha caminhado muito na reflexão teológica a respeito da relação entre fé e política, fé e compromisso, fé e revolução libertadora. Esse suporte teológico para os cristãos comprometidos com o processo nicaragüense, seja no tempo de luta revolucionária, como no de implantação de um sistema original fora dos moldes do socialismo real, tinha sido absolutamente fundamental. A derrota dos sandinistas nas eleições presidenciais levou os teólogos, sobretudo da América Central, a uma profunda revisão de suas análises e reflexões.

[a derrocada do socialismo] produziu dois fenômenos em relação à Tdl. Uma queda de interesse pela TdL, quer do grande público civil, quer do leitor médio, de um lado, e, do outro, uma certa situação incômoda por parte dos teólogos da libertação. O primeiro fenômeno manifestou-se na diminuição da procura da literatura da TdL, que chegou anos anteriores a ser altamente intensa e na dificuldade do prosseguimento com a publicação da coleção “teologia e libertação". O segundo fato se traduziu numa série de artigos de teólogos e cientistas sociais, que tentaram desvincular a crise do socialismo real com os ideais da TdL.

Já em termos eclesiais, segundo o mesmo Libânio,

Em termos eclesiais, estes últimos anos têm significado um duplo movimento antitético. De um lado, cresce um movimento conservador no interior da Igreja, sobretudo em nível de organização, e, de outro, as comunidades eclesiais de base, expressão maior de uma igreja junto às bases numa linha da libertação, continuam crescendo. Confirmam tal fato os Encontros Intereclesiais que prosseguem. Nos últimos tem crescido o número de seus participantes. Em Santa Maria, RS (1992) foram mobilizados 2.316 delegados vindos de todas as regiões do país numa proporção de 65,6% de leigos/as, sem falar de mais de mil membros das equipes de serviços e das famílias envolvidos no encontro. Em São Luiz do Maranhão (1997), estiveram representadas 240 igrejas particulares das 255 de todo o país (94%) com a presença de uns 60 bispos católicos. O número de delegados e de outros participantes atingiu uns 2.800. O conjunto dos Intereclesiais forneceu material suficiente para uma reflexão mais aprofundada.

Em termos teológicos, Libânio diz que:

[...] a teologia enfrenta uma revisão mais profunda de seu instrumental de análise. Na reunião dos teólogos da SOTER, em julho de 1990, os cientistas sociais defrontaram-se com o marco teórico marxista, que vinha sendo usado por muitos teólogos, ora em maior escala, ora em menor. Ficou claro que tal marco não só necessita ser ampliado, como também revisto em profundidade por causa de suas insuficiências, entre elas, da hipertrofia da classe em detrimento de aspectos culturais e sexuais da realidade, da incapacidade de analisar as relações de poder na Igreja adaptando análises da macro-sociedade, da carência de uma análise do estado, do desconhecimento de muitas novas realidades surgidas nesta nova fase do capitalismo, etc. Aponta como caminhos um uso maior da antropologia social, da sociologia das instituições, de métodos quantitativos, da teoria da ação (A. Touraine), etc.

Segundo Libânio, Frei Betto, a propósito do atual momento da teologia da libertação, diz que:

[...] analisando esse momento posterior à derrocada do socialismo, indica com muita lucidez algumas balizas. A teologia precisa retomar a questão da utopia libertadora em articulação com topias possíveis e realizáveis no mundo dos pobres. Necessita pensar o trabalho pastoral e elaborar reflexões em diálogo com os setores da classe média e com intelectuais, artistas, cientistas e formadores de opinião pública. A questão ecológica merece ser levada a sério na perspectiva do Terceiro Mundo e não ser julgada unicamente como problema de país rico. No campo da moral, deve-se estender à moral pessoal a ênfase dada até então à moral social. A TdL não pode ficar prisioneira dos conceitos de classes sociais, desconhecendo realidades como mulheres, crianças, negros e indígenas. A tecnologia de ponta abre novos horizontes e pressupostos à teologia até então não trabalhados suficientemente por nossos teólogos. A crise do socialismo coloca à teologia o dever ético de resgatar a esperança dos pobres e finalmente a TdL deve continuar a reflexão eclesiológica diante do problema da restauração eurocêntrica que coincide com a vitalidade da participação comunitária dos pobres.


Em 1999, a SOTER enfrentou o diálogo interdisciplinar com as ciências da natureza, de modo especial, com a cosmologia moderna, a astrofísica, as ciências biológicas. Perguntou-se, no Congresso da SOTER, pelos novos desafios epistemológicos, metodológicos e de conteúdo do diálogo interdisciplinar.

Segundo Libânio, os principais eixos-teses da teologia da libertação são:

a) de uma cristologia do Jesus histórico na perspectiva do seguimento e da identificação com o pobre passando por uma Trindade libertadora até uma pneumatologia incipiente. A cristologia latino-americana tem como traços a primazia: do elemento antropológico sobre o eclesiológico; do utópico sobre o fatual; do crítico sobre o dogmático; do social sobre o pessoal; da ortopráxis sobre a ortodoxia.

b) da salvação como libertação, passando por mediações na história até a criação de utopias em referência ao Reino sobretudo na luta pela vida.

c) de uma eclesiologia de experiências comunitárias a uma verdadeira eclesiogênese numa reinterpretação radical do poder e ministério na Igreja em relação com o Reino e com o mundo.

d) de uma concepção transformadora da ação do homem até a criação da nova terra e dos novos céus com abertura para a ecologia e para o problema da terra.

e) de uma teologia preocupada com as estruturas sociais para uma teologia aberta às culturas (etnias) em vista da real inculturação e inserção na dupla dimensão de prática e festa do povo latino-americano.

f) de um Deus revelador e libertador à pessoa de Jesus identificado com os pobres até o dom de sua vida (martírio).

g) de uma posição crítico-militante à aceitação crítica da religiosidade popular.

h) de uma concentração na teologia da práxis à busca de uma espiritualidade que a fundamente.

i) da presença discreta de elementos feministas, sobretudo no referente à mariologia para uma afirmação clara, explícita e ampla da teologia na ótica da mulher.

j) uma teologia em confronto com o capitalismo na perspectiva econômica.

k) da hegemonia da Igreja católica para uma situação religiosa plural.

l) além de continuar sendo uma teologia-sujeito passa também a teologia-objeto.

A teologia da libertação tem se reformulado. A metodologia já não é exclusivamente marxista, a espiritualidade está sendo revalorizada (a mística da luta) e o assistencialismo já é aceito para os excluídos. A teologia da libertação também teve que rever algumas coisas, como: a análise do sistema capitalista, o projeto socialista e as estratégias revolucionárias. Mas duas convicções permanecem: a experiência de Deus no pobre e o compromisso com o abandono da sociedade. A expansão do capitalismo neoliberal globalizado fez com que a miséria e a exclusão aumentassem. Mas, face à gigantesca crise cultural, os militantes da Igreja se fortaleceram em sua referência de fé e seu compromisso com os pobres.

A teologia da libertação tornou-se mais transigente. Está mais aberta a pontos de vista distintos, antes considerados “alienados”. A teologia da libertação não reivindica ser uma “teologia universal”, aplicável a quaisquer épocas e situações. Ela é uma teologia para a situação latino-americana contemporânea. Com efeito, os teólogos da libertação julgam a idéia de uma “teologia universal” uma perversão resultante da imposição do pensamento grego abstrato, em prejuízo do pensamento bíblico prático. Tal teologia “universal”, baseada apenas em verdades tidas como eternas, só pode ser estática e, no decurso do tempo, estéril. A teologia da libertação, antes, é um novo modo de fazer teologia.


A teologia protestante na segunda metade do século XX

Aqui se verificam a explosão pentecostal e, mais ultimamente, neopentecostal. A marca da teologia protestante neste período foi o conservadorismo, a partir do qual triunfou uma tendência à minimização da reflexão teológica e à supervalorização da fé pessoal, além de uma mentalidade dualista, dicotomizada, com radical polarização entre igreja e mundo, fé e política e entre Cristo e a cultura. Do ataque ao catolicismo passou-se mesmo a confrontar outras confissões protestantes e, depois, à condenação do “modernismo” ou “liberalismo” teológico. Apenas nos idos de 1960 é que alguns poucos teólogos se ocuparam de uma reflexão mais interessada nos problemas do homem de seu tempo, vertente esta que acabou sufocada. A teologia predominante era a dos missionários e, entre estes, os norte-americanos.

Mesmo mais tarde, quando a presença missionária se tornou mais fraca – conquanto continuasse a controlar a maioria dos seminários e editoras –, o que se verificou foi, praticamente, mera reprodução da teologia importada trazida pelos missionários. O mundo continuou a ser negado, rejeitado, prevalecendo a idéia de que, salvando-se a alma, o continente seria salvo. A reflexão bíblica é, basicamente, fruto da tensão entre o fundamentalismo e o modernismo teológicos. Ainda assim, e mesmo sob a vigilância das lideranças denominacionais, algum espaço foi conquistado nas décadas de 1960 e 1970, através da revista “Cristianismo y Sociedad” (ISAL), da “Faculdade Evangélica de Teologia”, de Buenos Aires, da “Fraternidade Teológica Latino-Americana” (FTL) e da Aliança Bíblica Universitária (ABU).

Não podemos deixar de mencionar a “teologia da missão integral” (TMI), amplamente desenvolvida em círculos evangelicais latino-americanos a partir do Pacto de Lausanne, realizado na cidade suíça de mesmo nome, em julho de 1974. A TMI revela sua novidade no fato de – como a teologia da libertação – também ser uma teologia contextualizada, referindo-se a um ambiente sócio-histórico e cultural específico. A TMI é teologia da liberdade teológica, histórica e eclesial. Seu objetivo é o bem-estar da vida no mundo, no conjunto da criação, pela via do conhecimento de Deus. É teologia evangelizadora. Seu protesto social e a busca da transformação da situação social da América Latina se dão pelo viés da fé. Ela é crítica no sentido de que não dispensa a suspeita e a análise conjuntural, valendo-se, também, do ferramental proporcionado pelas ciências sociais. Seu lema é “Chamando a Igreja toda para pregar o Evangelho todo ao mundo todo”.


REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Israel Belo de. As cruzadas inacabadas. Introdução à história da igreja na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Gêmeos, 1980.

DREHER, Martin N. A igreja latino-americana no contexto mundial. Coleção “Historia da Igreja”. 3 ed. São Leopoldo: Sinodal, 1999.

GUIMARÃES, Luiz Ernesto. A teologia da libertação e o contexto latino-americano. Disponível em: http://www2.uel.br/eventos/sepech/arqtxt/resumos- anais/LuizEGuimaraes.pdf

KLOPPENBURG, Boaventura. Bispo jubilar com suas vicissitudes eclesiais. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/viewFile/2731/2080

LIBÂNIO, João Batista. Panorama da teologia da América Latina nos últimos anos. Disponível em: http://www.servicioskoinonia.org/relat/229.htm

RÜCKERT, Paulo Roberto. Teologia Contemporânea. Apostila usada na disciplina “Teologia Contemporânea I” do curso de bacharel em teologia da Faculdade Unida de Vitória. Vitória: FUV, 2008.

_________, Paulo Roberto. Teologia Contemporânea. Apostila usada na disciplina “Teologia Contemporânea II” do curso de bacharel em teologia da Faculdade Unida de Vitória. Vitória: FUV, 2009.

VV.AA. História da teologia na América Latina. Série “Teologia em Diálogo”. São Paulo: Edições Paulinas, 1981.