"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A visão aristocrática do mundo

Manfredo Araújo de Oliveira

A ideia da igualdade de direitos emergiu na modernidade como o núcleo da vida democrática. Foi a partir dessa ideia que se criou o espaço das lutas políticas em função de sua efetivação na configuração das sociedades. Desde a redemocratização após a dissolução da ditadura militar nós brasileiros temos passado por essa experiência e tomamos consciência de que há obstáculos enormes em diversos níveis de nossa vida para o estabelecimento entre nós de uma sociedade que mereça o nome de democrática. Um desses obstáculos se vincula à nossa cultura política e se pode chamar de "visão aristocrática da vida”, algo radicalmente contraposto a uma concepção democrática e ainda fortemente presente em nossa maneira de ver o social, embora no mais das vezes de forma implícita.
Uma primeira característica dessa forma de pensar é o que os sociólogos denominam a "naturalização da vida social”. Trata-se da legitimação da ordem social faticamente existente através de sua identificação com uma ordem que provém da própria constituição do ser humano. Nessa ordem não se deve tocar porque o lugar que cada indivíduo ocupa no todo social lhe é determinado pela ordem natural das coisas que lhe é transmitida em seu nascimento. Cada um deve querer ser aquilo que ele é por natureza, deve seguir o caminho que lhe foi traçado desde o nascimento em razão de sua natureza. Assim, o rico deseja ser rico, o pobre deve desejar ser pobre, o negro e a mulher não têm porque querer mudar seu lugar no mundo. Somente a ilusão, a fraqueza da vontade ou a manipulação da consciência explicam o aparecimento de posturas que não se adéquam a essa situação natural. Isso significa identificar o faticamente existente com o normativo e em alguns casos essa identificação ainda aparece justificada por referência a ideias religiosas, ou seja, é na própria esfera divina que a lei ou o conjunto das normas encontram sua origem e sua legitimação.
Na visão aristocrática da vida a experiência do outro é uma experiência de níveis distintos de humanidades: cada um se encontra num nível determinado na hierarquia dos humanos, Dessa forma, há uma experiência das diferenças entre os seres humanos que resiste às semelhanças biológicas e às características comuns do ser pessoal. A humanidade é vista como uma humanidade naturalmente diferenciada e cada um se deve contentar com "seu lugar”. Numa palavra, para essa concepção há graus de humanidade (embora normalmente ninguém tenha coragem de assumir abertamente semelhante afirmação) e nós certamente tomaríamos um grande susto se examinássemos com honestidade e rigor nossas palavras e nossos comportamentos porque iríamos descobrir que falamos e nos comportamos muitas vezes de acordo com esta concepção do mundo e por isso na realidade nos contrapomos à tese da igualdade de direitos.
A visão democrática emerge de uma experiência radicalmente oposta: pode-se dizer que aqui a experiência básica é a de que o outro é meu semelhante de onde decorre a tese da igualdade básica de todos os seres humanos e a exigência de configurar a vida de tal modo que esta igualdade básica se efetive em relações simétricas em todas as esferas da existência resistindo a todo tipo de ordenação que procure impedir ou limitar sua efetivação. Na raiz da democracia está a primazia da igualdade o que implica um combate contra os privilégios que devem neste contexto devem ser considerados como elemento inaceitável e a luta pela igualdade de direitos. Quando se assume esta postura, a visão aristocrática perde seu caráter natural e se revela como fruto de pura convenção que se funda em interesses de determinados grupos sociais. Essa descoberta do caráter construído da ordem social, econômica e política traz, como diz o presidente do Observatório de Desigualdades de Paris, P. Savidan, grandes consequências não só para a configuração da vida coletiva, mas também para a experiência que o ser humano faz de sua própria humanidade.

disponível em: 
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=61450
 

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Em tempos de lobos e mercenários...

O Preço (Fruto Sagrado)













“Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes” (2 Timóteo 3.1-5).


sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Lula em Paris: imprensa dá vexame


Ricardo Kotscho

Por que Lula e não Fernando Henrique Cardoso, seu antecessor, para receber uma homenagem da instituição?
Começa assim, acreditem, com esta pergunta indecorosa, a entrevista de Deborah Berlinck, correspondente de "O Globo" em Paris, com Richard Descoings, diretor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, o Sciences- Po, que entregou o título de Doutor Honoris Causa ao ex-presidente Lula, na tarde desta terça-feira [27/09].
Resposta de Descoings:
"O antigo presidente merecia e, como universitário, era considerado um grande acadêmico (...) O presidente Lula fez uma carreira política de alto nível, que mudou muito o país e, radicalmente, mudou a imagem do Brasil no mundo. O Brasil se tornou uma potência emergente sob Lula, e ele não tem estudo superior. Isso nos pareceu totalmente em linha com a nossa política atual no Sciences- Po, a de que o mérito pessoal não deve vir somente do diploma universitário. Na França, temos uma sociedade de castas. E o que distingue a casta é o diploma. O presidente Lula demonstrou que é possível ser um bom presidente, sem passar pela universidade".
A entrevista completa de Berlinck com Descoings foi publicada no portal de "O Globo" às 22h56 do dia 27/9. Mas a história completa do vexame que a imprensa nativa sabuja deu estes dias, inconformada por Lula ter sido o primeiro latino-americano a receber este título, que só foi outorgado a 16 personalidades mundiais em 140 anos de história da instituição, foi contada por um jornalista argentino, Martin Granovsky, no jornal Página 12.
Tomei emprestada de Mino Carta a expressão imprensa sabuja porque é a que melhor qualifica o que aconteceu na cobertura do sétimo e mais importante título de Doutor Honoris Causa que Lula recebeu este ano. Sabujo, segundo as definições encontradas no Dicionário Informal, significa servil, bajulador, adulador, baba-ovo, lambe-cu, lambe-botas, capacho.
Sob o título "Escravocratas contra Lula", Granovsky relata o que aconteceu durante uma exposição feita na véspera pelo diretor Richard Descoings para explicar as razões da iniciativa do Science- Po de entregar o título ao ex-presidente brasileiro.
"Naturalmente, para escutar Descoings, foram chamados vários colegas brasileiros. O professor Descoings quis ser amável e didático (...). Um dos colegas perguntou se era o caso de se premiar a quem se orgulhava de nunca ter lido um livro. O professor manteve sua calma e deu um olhar de assombrado (...)."
"'Por que premiam a um presidente que tolerou a corrupção', foi a pergunta seguinte. O professor sorriu e disse: 'Veja, Sciences- Po não é a Igreja Católica. Não entra em análises morais, nem tira conclusões apressadas. Deixa para o julgamento da História este assunto e outros muito importantes, como a eletrificação das favelas em todo o Brasil e as políticas sociais (...). Não desculpamos, nem julgamos. Simplesmente, não damos lições de moral a outros países.'"
"Outro colega brasileiro perguntou, com ironia, se o Honoris Causa de Lula era parte da ação afirmativa do Sciences- Po. Descoings o observou com atenção, antes de responder. 'As elites não são apenas escolares ou sociais', disse. 'Os que avaliam quem são os melhores, também. Caso contrário, estaríamos diante de um caso de elitismo social. Lula é um torneiro-mecânico que chegou à presidência, mas pelo que entendi foi votado por milhões de brasileiros em eleições democráticas.'"
No final do artigo, o jornalista argentino Martin Granovsky escreve para vergonha dos jornalistas brasileiros:
"Em meio a esta discussão, Lula chegará à França. Convém que saiba que, antes de receber o doutorado Honoris Causa da Sciences- Po, deve pedir desculpas aos elitistas de seu país. Um trabalhador metalúrgico não pode ser presidente. Se por alguma casualidade chegou ao Planalto, agora deveria exercer o recato. No Brasil, a Casa Grande das fazendas estava reservada aos proprietários de terra e escravos. Assim, Lula, silêncio por favor. Os da Casa Grande estão irritados".
Desde que Lula passou o cargo de presidente da República para Dilma Rousseff, há nove meses, a nossa grande imprensa tenta jogar um contra o outro e procura detonar a imagem do seu governo, que chegou ao final dos oito anos com índices de aprovação acima de 80%.
Como até agora não conseguiram uma coisa nem outra, tentam apagar Lula do mapa. O melhor exemplo foi dado hoje pelo maior jornal do país, a "Folha de S. Paulo", que não encontrou espaço na sua edição de 74 páginas para publicar uma mísera linha sobre o importante título outorgado a Lula pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris.
Em compensação, encontrou espaço para publicar uma simpática foto de Marina Silva ao lado de Fernando Henrique Cardoso, em importante evento do instituto do mesmo nome, com este texto-legenda:
"AFAGOS - FHC e Marina em debate sobre Código Florestal no instituto do ex-presidente; o tucano creditou ao fascínio que Marina gera o fato de o auditório estar lotado".
Assim como decisões da Justiça, criterios editoriais não se discutem, claro.
Enquanto isso, em Paris, segundo relato publicado no portal de "O Globo" pela correspondente Deborah Berlinck, às 16h37, ficamos sabendo que:
"O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi recebido com festa no Instituto de Estudos Políticos de Paris - o Sciences- Po -, na França, para receber mais um título de doutor honoris causa, nesta terça-feira. Tratado como uma estrela desde sua entrada na instituição, ele foi cercado por estudantes e, aos gritos, foi saudado. Antes de chegar à sala de homenagem, em um corredor, Lula ouviu, dos franceses, a música de Geraldo Vandré, 'para não dizer que eu não falei das flores'."
"A sala do instituto onde ocorreu a cerimônia tinha capacidade para 500 pessoas, mas muitos estudantes ficaram do lado de fora. O diretor da universidade, Richard Descoings, abriu a cerimônia explicando que a escolha do ex-presidente tinha sido feita por unanimidade".
Em seu discurso de agradecimento, Lula disse:
"Embora eu tenha sido o único governante do Brasil que não tinha diploma universitário, já sou o presidente que mais fez universidades na história do Brasil, e isso possivelmente porque eu quisesse que parte dos filhos dos brasileiros tivesse a oportunidade que eu não tive".
Para certos brasileiros, certamente deve ser duro ouvir estas coisas. É melhor nem ficar sabendo.


disponível em: 
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=60857