"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

domingo, 17 de junho de 2012

Enquanto isso, em Brasília (A nova sede da igreja no país - democracia evangélica)


Da "volta de Jesus" e do "temor a Deus"


Osvaldo Luiz Ribeiro*

1. Os alunos vão saber de cara que falo deles, da turma de hoje. A aula era de Hebraico, mas uma coisa traz a outra...


2. Por alguma razão, surgiu a conversa sobre a "volta de Jesus". Aí, brinquei: se Jesus voltar daqui a dez minutos, ainda assim... E, então, brinquei de novo, dizendo assim: faço uma aposta - se Jesus não voltar em dez minutos...

3. Uma aluna, querida toda vida, interpelou-me: brinca com isso, não professor. E, então, considerou que brincar com isso é falta de temor a Deus...

4. Estávamos em uma Faculdade. Algumas considerações são necessárias.

5. "Volta de Jesus". Sim, é uma doutrina das Igrejas. A maioria foge da questão de discutir o "como". Mas há livros à venda, com todas as classificações possíveis e imagináveis: há milenistas, milenistas pré, milenistas pós, a-milenistas, há gente de todo tipo.

6. E há uma categoria: teólogos - e sérios! - que consideram, biblicamente, que não há "outra" volta de Jesus, porque a "presença" a que ele se referia ([n]os Evangelhos) era aquela sob cuja forma ele viveu e morreu. Fala-se, aí, de escatologia realizada.

7. Ora, uma categoria inteira de livros muito sérios, de gente muito séria, considera que toda a expectativa das igrejas a respeito de uma "segunda volta" de Jesus constitui equívoco da Igreja primitiva que, desconsiderando o sentido das palavras de Jesus, aplicou-as, equivocadamente, a um futuro a que Jesus não se teria referido, uma vez que ele teria falado de sua presença lá e então, entre os judeus.

8. De modo que as doutrinas que circulam nas igrejas não tem nenhuma relação direta com Deus - se é que tem relação indireta! São construções elaboradas pelos receptores das tradições, que, por sua vez, receberam de outros, que, por sua vez, receberam de outros e, quando você vai ver a origem, ela chus, e virou bus.

9. Somente a catequese e o púlpito, eficientes em termos psicológicos, são capazes de nos fazer vincular doutrina e Deus. De sorte que, quando se nos apresenta, publicamente e às faces, a declaração indireta de que estamos diante de uma doutrina que, bem pesada, pode constituir ruído do tempo, corremos o risco de nos sentir próximos da blasfêmia, e, por causa disso, tememos.

10. Mas somos teólogos e teólogas. Nunca é Deus quem se ofende. Somos nós! É nossa tradição que é confrontada, e nos ofendemos. Porque, no fundo, não aprendemos que estamos enfiados até o pescoço em pura tradição, e ainda alimentamos o desejo - é só o que é: desejo - de que essas tradições sejam, queira Deus!, divinas.

11. Mas não são.

12. Quando, então, eu digo, de modo muito alegre e brincalhão, para uma turma, que se Jesus não voltar em dez minutos, essa questão específica do Hebraico vai cair na prova, com o que eu quero dizer que não há chance de a questão não cair - porque Jesus não vai voltar (e não voltou!) em dez minutos, isso nada tem a ver com Deus, com temor ou falta dele, com blasfêmia ou reverência: isso é apenas a constatação óbvia de que esses mantras são hipnóticos apenas para quem ainda é rã de charco sob o facho de luz das homilias...

13. Teólogos e teólogas podem, ainda, ser rãs de charco: mas devem comprar e usar óculos escuros, porque, enquanto as homilias nos encantarem os olhos com sua luz cegante não faremos teologia para a qual valha a pena dedicarmos as nossas noites, que melhor gastaríamos no amor quente do corpo amado...


*Osvaldo Luiz Ribeiro é doutor em teologia e professor da Faculdade Unida de Vitória.

texto disponível em: 

terça-feira, 5 de junho de 2012

A “hermenêutica da tortura” de Silas Malafaia

Por Paulo Nascimento



Não tenho nenhum problema em assumir que já gostei de Silas Malafaia. Eu o ouvi pela primeira vez em 1998, já na fase dos DVDs. Lembro-me exatamente a primeira mensagem que ouvi daquele pastor. Era uma reflexão sobre legalismo. Malafaia me chamou muito a atenção por mostrar uma postura diferente no contexto da Assembleia de Deus – igreja conhecida pelo seu rigor quanto aos chamados usos e costumes.
Mas também não tenho nenhum problema de dizer que faz tempo que Malafaia deixou de ser um pastor interessante para mim. Infelizmente, hoje o vejo como mais um subproduto de uma mentalidade evangélica com a qual não me identifico em qualquer aspecto. Malafaia frustrou as esperanças de quem achou que sua ruptura com os padrões históricos da Assembleia de Deus iria apresentar alguma novidade interessante dentro do protestantismo brasileiro. Esperávamos um pentecostalismo inteligente, engajado, dialógico, que no fervor do Espírito Santo pudesse trazer um renovo genuinamente brasileiro ao nosso protestantismo. O que vimos aparecer? Uma reprodução caricatural da pior versão do evangelicalismo norte-americano. Justamente aquela que se pauta na voracidade por dinheiro e por poder político-midiático.

Recentemente Malafaia desafiou blogueiros e “críticos” a refutarem suas posições sobre prosperidade. Exibiu uma mensagem em que fala sobre o assunto, e desafiou seus desafetos a apresentar-lhe supostos erros teológicos. Interessante é que Malafaia não abre nenhum canal para o debate. Não dialoga com ninguém. Desafia os críticos, mas não senta à mesa com eles, nem os convida para uma conversa franca em seus programas na TV. Vocifera na segurança dos estúdios e dos púlpitos. Mas teme o calor de um papo com gente madura. É soberano nos monólogos. Nada mais.

Não me alongarei numa resposta à sua fatídica exposição de 2Co 8 e 9. Não é preciso refutá-la ponto a ponto, pois quando algo está contaminado desde a raiz, a obviedade da podridão do resto é notória. Antes, é preciso reconhecer que Malafaia não possui mesmo outra alternativa. A fim de sustentar toda estrutura religiosa que lhe circunda e lhe beneficia – exposta em seu nababesco estilo de vida –, é preciso torturar o texto bíblico para que ele fale não a sua própria verdade, mas a verdade que o torturador procura. Como um torturador empunha as suas ferramentas e faz gemer o torturado a fim de produzir uma verdade a qualquer custo, Malafaia empunha suas lentes hermenêuticas prévias a fim de que o texto produza uma verdade-mentira. O que temos? Um sujeito arguto violentando textos e mentes.

Malafaia despreza todos os elementos contextuais de 2Co 8 e 9. A palavra “contexto” não aparece uma só vez em sua fala. E que contexto é esse? É o contexto de uma coleta efetuada por Paulo, a fim de socorrer a comunidade cristã de Jerusalém, que passava por um momento de grande necessidade.

Paulo escreve aos coríntios e lhes apresenta o exemplo de como haviam procedido os cristãos da Macedônia nesse tocante, mostrando grande generosidade diante da difícil situação dos pobres de Jerusalém. Toda a argumentação de Paulo nos capítulos 8 e 9 de 2Co é um esforço de fazer os coríntios se integrarem numa corrente de solidariedade. Não há nesses capítulos nenhuma “doutrina” sobre dízimos e ofertas. Não há nenhuma “lei de semeadura”. Há, outrossim, a descrição de uma experiência de solidariedade. Há uma exposição de um apóstolo que calejava as mãos produzindo tendas, e cujo coração se comovia com a situação dos pobres e necessitados de Jerusalém. Há alguém que acreditava no poder da solidariedade, e que argumentava em favor dela, dizendo que solidariedade produz solidariedade.

Malafaia subverte a compreensão mais rudimentar do que seja a Graça de Deus. Subverte aquela compreensão basiquinha da Graça como um “favor imerecido”. Pois se o favor de Deus é equivalente às ofertas “semeadas” (isto é, dadas em dinheiro à igreja!), tal favor já não é imerecido. Na verdade, já nem é mais favor. É fruto de barganha. Não é Graça, mas des-graça. É mesmo inexplicável que Paulo tenha ensinado acerca das “leis da semeadura” e tenha permanecido um operário, um fazedor de tendas durante a vida.

Malafaia comete um equívoco semelhante ao que o pentecostalismo fez com Atos 2: o equívoco de institucionalizar uma experiência. O pentecostalismo fez das experiências do Dia de Pentecostes, descritas em Atos 2, um Dogma. Exigiu sua replicabilidade como critério da genuína experiência do Espírito. Enclausurou as amplas possibilidades do agir do Espírito no carisma do “falar em línguas”. Empobreceu por completo a sua própria experiência pneumatológica. O Espírito, obviamente, foi soprar em outros movimentos da sociedade. Malafaia comete o mesmo erro na sua tortura a 2Co 8 e 9. Engessa e dogmatiza uma experiência pontual. Empobrece aquilo que poderia ser potencialmente disparador de uma espiritualidade solidária. A experiência de solidariedade humana é, desse jeito, revivida em outros arraiais. Alguns não-cristãos. Outros anti-cristãos. Glória a Deus!

A hermenêutica da tortura operada por Malafaia em 2Co 8 e 9 é irônica e trágica. Irônica, pois trata-se de um televangelista rico, numa sociedade capitalista, apropriando-se e torturando textos de um apóstolo pobre, de uma sociedade pré-capitalista. Trágica, pois aquilo que poderia ser fundamento de uma espiritualidade da solidariedade, tão urgente em nossos dias, torna-se fomento para uma teologia diabólica, em que Deus é constrangido a prosperar indivíduos em seus desejos egoístas e consumistas.