"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

sábado, 19 de novembro de 2011

Considerações sobre o corpo de Cristo (prédica)

Handall Fabrício Martins


TEXTO-BASE – MATEUS 18.15-20 (NTLH):
“- Se o seu irmão pecar [contra você], vá e mostre-lhe o seu erro. Mas faça isso em particular, só entre vocês dois. Se essa pessoa ouvir o seu conselho, então você ganhou de volta o seu irmão. Mas, se não ouvir, leve com você uma ou duas pessoas, para fazer o que mandam as Escrituras Sagradas. Elas dizem: ‘Qualquer acusação precisa ser confirmada pela palavra de pelo menos duas testemunhas [cf. Dt 19.15].’ Mas, se a pessoa que pecou não ouvir essas pessoas, então conte tudo à igreja. E, se ela não ouvir a igreja, trate-a como um pagão ou como um cobrador de impostos. - Eu afirmo a vocês que isto é verdade: o que vocês proibirem na terra será proibido no céu, e o que permitirem na terra será permitido no céu. - E afirmo a vocês que isto também é verdade: todas as vezes que dois de vocês que estão na terra pedirem a mesma coisa em oração, isso será feito pelo meu Pai, que está no céu. Porque, onde dois ou três estão juntos em meu nome, eu estou ali com eles.” Palavra da Salvação. Amém.
No texto do Evangelho indicado no calendário litúrgico para este domingo, Jesus nos dá algumas orientações práticas sobre como manter o funcionamento saudável daquilo que Paulo chama de corpo de Cristo, nós, sua Igreja, da qual ele, Jesus, é a cabeça. Especificamente, essas orientações têm como centro a temática que gira em torno dos polos pecado/arrependimento do irmão membro da comunidade de fé e como nós, Igreja, corpo de Cristo, devemos resolver a questão do pecado de um irmão penitente, arrependido ou não. Isto é, como, grosso modo, se procede a disciplina na Igreja.
Importante: se pecado, biblicamente falando, fosse algo que melindrasse a Deus, nem haveria necessidade da existência do texto de hoje. Pecado é, na Bíblia, desde o AT, aquilo que contamina e quebra as relações solidárias e fraternas que devem sempre reinar na comunidade de fé (= corpo de Cristo). É por isso que o pecado precisa ser extirpado (e não o pecador). Nesse sentido, Paulo já advertiu aos gálatas: “Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guardai-vos para que não sejais também tentados” (Gl 6.1). E também aos tessalonicenses: “Caso alguém não preste obediência à nossa palavra dada por esta epístola, notai-o; nem vos associeis com ele, para que fique envergonhado. Todavia, não o considereis por inimigo, mas adverti-o como irmão” (2Ts 3.14-15).
É bom, também, lembrar que todos nós somos igualmente pecadores. E não somos pecadores porque pecamos. Pecamos porque somos pecadores. Ou seja, o pecado faz parte da nossa natureza humana. Poderíamos, inclusive – fosse isso possível –, passar a vida inteira sem cometer um único deslize e, ainda assim, continuaríamos sendo pecadores. Nascemos e morremos pecadores. Quiçá arrependidos, mas pecadores.
O texto sob reflexão nesta manhã está inserido num contexto maior, que é o capítulo dezoito de Mateus. Aqui, a grande temática é – para além do círculo mais chegado dos doze – a preocupação com o conjunto maior dos discípulos, a quem Jesus, em Mateus, chama, metaforicamente, de crianças, pequeninos, ovelhas e, enfim, de irmãos e conservos. Percebe-se a grande apreensão que existia com relação ao risco de afastamento ou perda de qualquer membro do corpo, o que também se revela pelo incentivo ao exercício da tolerância e do perdão que os discípulos sempre devem uns para com os outros. E sobre este último aspecto – tolerância e perdão mútuos –, a razão é bem simples: Deus nos perdoou uma dívida impagável.
Se a Deus não devemos mais nada, o mesmo não ocorre com relação ao nosso irmão e ao nosso próximo. Novamente Paulo nos diz: A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei” (Rm 13.8). Também o amor é uma dívida impagável, mas, diferentemente, não podemos deixar de tentar liquidá-la, diariamente. E se digo isso é porque sem amor não pode haver nem tolerância nem perdão. Se o nosso corpo físico se nutre de comida e água, o corpo de Cristo somente sobrevive quando também é devidamente alimentado. Conforme Paulo: “Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor” (Ef 4.15-16).
1.            “- Se o seu irmão pecar [contra você], [e não existe pessoa que não peque] vá e mostre-lhe o seu erro. Mas faça isso em particular, só entre vocês dois. Se essa pessoa ouvir o seu conselho, então você ganhou de volta o seu irmão. Mas, se não ouvir, leve com você uma ou duas pessoas, para fazer o que mandam as Escrituras Sagradas. Elas [as Escrituras Sagradas] dizem: ‘Qualquer acusação precisa ser confirmada pela palavra de pelo menos duas testemunhas [cf. Dt 19.15].’ Mas, se a pessoa que pecou não ouvir essas pessoas, então conte tudo à igreja. E, se ela não ouvir a igreja, trate-a como um pagão ou como um cobrador de impostos.”
No texto paralelo do evangelho de Lucas, Jesus diz: “(...) Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o; se ele se arrepender, perdoa-lhe. Se, por sete vezes no dia, pecar contra ti e, sete vezes, vier ter contigo, dizendo: Estou arrependido, perdoa-lhe” (Lc 17.4-5). Na sequência mesma da passagem de Mateus que estamos vendo hoje, Jesus, em resposta à pergunta de Pedro sobre quantas vezes se deve perdoar, diz: “(...) Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mt 18.22).
À época da composição do evangelho de Mateus, a comunidade de judeus palestinenses que creram em Jesus estava passando por um momento de perseguição e de autoafirmação. Daí é que adveio a necessidade de se estabelecerem regras rígidas de disciplina, como vemos no texto. A determinação que se faz para tratar o impenitente “como um pagão ou como um cobrador de impostos” – que eram considerados pelos judeus o pior tipo de gente –, parece (notem bem: parece) destoar totalmente da proposta do Evangelho como um todo, em cujo centro está exatamente “o escândalo da graça”. E é por isso que não vamos nos deter nesse aspecto do texto.
Ora, o próprio Jesus e segundo o mesmo Mateus, em várias passagens, convivia com pagãos, pecadores, cobradores de impostos e prostitutas, fazendo muitas de suas refeições com eles, e até se hospedando na casa de alguns, o que significava, naqueles dias, máxima intimidade. Jesus chegou a afirmar que coletores de impostos e prostitutas estavam adentrando o Reino, e antes dos fariseus, pois estes não creram na pregação de João Batista, nem na dele, Jesus, ao passo que aqueles – coletores de impostos e meretrizes –, sim.
Pois bem, visto que: não existe pessoa que não peque; não existe pecado “maior” ou “menor”; e é do coração que procedem os maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias, etc.; é como se – no linguajar de Mateus – todos fôssemos coletores de impostos, pagãos, pecadores e prostitutas. Ou seja, o pecado está em nós, de qualquer jeito. Nossa luta é pra não deixar que ele se concretize em ações, pois estas, sim, vão ter consequências, maiores ou menores, no mundo social. E aí, a coisa pode se complicar. O fato é que estamos todos no mesmo barco.
Não obstante, é digno de nota o rito da disciplina pelo qual o pecador impenitente deve passar, segundo Mateus, pois ele não dá margem a coisas que, infelizmente, são muito comuns: mexericos, fofocas, maledicências, intrigas – coisas que contaminam todo o corpo, toda a igreja. Muitas vezes, nós falamos do acontecido pra todo mundo, menos com quem devemos, de fato, falar. É muito comum, também, valorizarmos em demasia as ofensas que os irmãos na fé nos fazem. Até a nossa suposta lógica – segundo a qual o ofensor é quem tem de vir até nós para pedir perdão – Jesus a inverte em Mateus 5.23-24: “Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta”. Paulo também trata desse assunto, quando fala que devemos ser “espirituais” (ou maduros na fé), em vez de “carnais” (imaturos na fé ou crianças em Cristo).  
2.  - Eu afirmo a vocês que isto é verdade: o que vocês proibirem [desligarem] na terra será proibido [desligado] no céu, e o que permitirem [ligarem] na terra será permitido [ligado] no céu. - E afirmo a vocês que isto também é verdade: todas as vezes que dois de vocês que estão na terra pedirem a mesma coisa em oração, isso será feito pelo meu Pai, que está no céu. Porque, onde dois ou três estão juntos em meu nome, eu estou ali com eles.”
O contexto imediato da passagem, segundo já vimos, tem a ver com os trâmites da disciplina do irmão pecador na Igreja. Também já vimos que, no contexto maior, a Igreja passava por perseguição e carecia de autoafirmação e, portanto, de regras rígidas de disciplina (as quais, em última instância, tinham o objetivo de trazer os irmãos de volta, e não afastá-los). É nesse contexto que se afirma a autoridade divinamente transferida à Igreja quanto ao que ela pode proibir (desligar) ou permitir (ligar). Ou, ainda, quanto ao pronto atendimento, da parte de Deus, àquilo que se pedir concordemente em oração. Só falamos isso, novamente, para situar o texto em seu contexto. Não é, pois, o que nos interessa hoje.
No livro dos Atos, nos é dito que os discípulos perseveravam unânimes, ao passo que Deus lhes acrescentava os que iam sendo salvos. Também é dito que todos os que creram pensavam e sentiam do mesmo modo. Paulo nos adverte a que falemos, pensemos e sintamos a mesma coisa; que não haja divisões entre nós; que sejamos inteiramente unidos (e unidos de alma!), na mesma disposição mental e no mesmo parecer. Unanimidade, concórdia, mesmo pensamento e sentimento: essa é a lógica que deve pautar o funcionamento do corpo de Cristo! Utopia? Pois é justamente essa a palavra que melhor qualifica o reino de Deus, inaugurado por Jesus. Voltando à metáfora do corpo humano, nele tudo funciona conjunta, sistêmica, organicamente em direção a um só objetivo: a manutenção do corpo vivo. Aceitemos nós ou não, Lucas, o escritor dos Atos, atribui o crescimento da Igreja – tanto quantitativa, quanto qualitativamente – exatamente a essa utopia, que fazia com que a Igreja, nas palavras dele, caísse na graça ou ganhasse a simpatia de todo o povo. 
A única possibilidade que temos, de fato, de ligar, desligar ou concordar acerca de qualquer coisa na terra e isso ser corroborado no céu é que isso coincida com a vontade de Deus. De novo, Paulo nos dá uma ótima orientação: “Não vivam como vivem as pessoas deste mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio de uma completa mudança da mente de vocês. Assim vocês conhecerão a vontade de Deus, isto é, aquilo que é bom, perfeito e agradável a ele” (Rm 12.2).
Vejamos quão grande é nossa responsabilidade enquanto igreja, corpo de Cristo! As pessoas que Deus tem nos confiado para formar e discipular, sobre cada uma delas nós temos um poder de influência às vezes inimaginável. Uma palavra mal dita pode ter consequências terríveis. Por outro lado, palavras bem ditas são bênção! Que Deus nos ajude! Amém!

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Jesus, o reformador (prédica, a propósito da Reforma Protestante)

Handall Fabrício Martins

Mateus 23.1-12 (NTLH):

“Então Jesus falou à multidão e aos seus discípulos. Ele disse: - Os mestres da Lei e os fariseus têm autoridade para explicar a Lei de Moisés. Por isso vocês devem obedecer e seguir tudo o que eles dizem. Porém não imitem as suas ações, pois eles não fazem o que ensinam. Amarram fardos pesados e os põem nas costas dos outros, mas eles mesmos não os ajudam, nem ao menos com um dedo, a carregar esses fardos. Tudo o que eles fazem é para serem vistos pelos outros. Vejam como são grandes os trechos das Escrituras Sagradas que eles copiam e amarram na testa e nos braços! E olhem os pingentes grandes das suas capas! Eles preferem os melhores lugares nos banquetes e os lugares de honra nas sinagogas. Gostam de ser cumprimentados com respeito nas praças e de ser chamados de ‘mestre’. Porém vocês não devem ser chamados de ‘mestre’, pois todos vocês são membros de uma mesma família e têm somente um Mestre. E aqui na terra não chamem ninguém de pai porque vocês têm somente um Pai, que está no céu. Vocês não devem também ser chamados de ‘líderes’ porque vocês têm um líder, o Messias. Entre vocês, o mais importante é aquele que serve os outros. Quem se engrandece será humilhado, mas quem se humilha será engrandecido.” Palavra da Salvação. Amém.

“(...) Que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, nos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos do nosso coração, para sabermos qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza da glória da sua herança nos santos e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia da força do seu poder” (Ef 1.17-19, adaptado).

Antes de começar a prédica propriamente dita, gostaria de fazer uma observação: todas as vezes em que textos bíblicos forem lidos por mim, a versão utilizada é a ARA, 2.ª edição.

No culto de hoje, estamos celebrando os 494 anos da Reforma Protestante, cuja data emblemática foi 31/10/1517, dia em que o monge agostiniano alemão Martinho Lutero afixou as famosas 95 teses na entrada da Catedral de Wittenberg. Grosso modo, Reforma Protestante foi o conjunto de acontecimentos que levaram vários grupos, até nações inteiras, a romper com a Igreja Católica Romana, dando origem às primeiras confissões evangélicas.

Bem, espero não começar criando polêmica. Vamos ver. Quem foi o maior reformador religioso, dentro desta nossa grande tradição judaico-cristã? Calvino? Lutero? Zwínglio? Mas, teríamos que falar, da mesma forma, por questão de justiça histórica, dos chamados pré-reformadores, por exemplo, Huss e Wycliff. E aí, então, teríamos de retroceder ainda mais no tempo até os profetas do Antigo Testamento, como Samuel, Amós, Oseias, Miqueias, Jeremias, Isaías, pois todos estes igualmente fizeram críticas agudas ao modo como o povo ou os sacerdotes praticavam a religião em Israel.

Também João, o batizador – que alguns gostam de chamar de “batista” – foi um profeta, resgatando, de certa maneira, a tradição de Elias. E, nesse sentido, Jesus – além de Filho de Deus, Messias, Senhor, Salvador – também foi profeta. Porém, foi o maior de todos. Maior até que Moisés, conforme a promessa de Deuteronômio 18.15.

Ora, Jesus nasceu, viveu e morreu como judeu, bem como todos os seus seguidores das primeiras gerações. A diferença consistia no fato de que estes criam que Jesus havia sido o Messias esperado e prometido no AT, sendo apelidados como os “do caminho” e, um pouco depois, “cristãos”, pejorativamente. Mas, no segundo século de nossa era, o legado de Jesus tornara-se tão forte e, de certa maneira, tão incompatível com o judaísmo, que os “do caminho”, os “cristãos”, foram excomungados, expulsos do judaísmo. Jesus, cerca de um século depois de sua morte, conseguiu fazer surgir uma nova religião: o cristianismo.

Jesus disse que veio não para revogar a lei ou os profetas, mas para cumpri-los. Todavia, quando Jesus faz uso da fórmula “ouvistes que foi dito: [...] eu, porém, vos digo:” (cf. p. ex., Mt 5.21, 22, 27, 28), isso representa uma ruptura com a piedade judaica e o protesto de Jesus contra a interpretação equivocada da lei, e não contra a própria lei. Cristo não revogou, mas reinterpretou, sim, a lei de Moisés, o que aprofundou e revelou o seu verdadeiro sentido. Jesus estabeleceu novos critérios de interpretação da Escritura, quais sejam o amor, a graça, o perdão, a misericórdia e a justiça, revelados concretamente no valor que ele atribuiu à pessoa humana. Jesus humanizou a palavra de Deus. Ora, não foi ele mesmo a palavra encarnada, Palavra feita gente? Mas tudo o que eu tenho dito até aqui – já que hoje é culto da Reforma – foi para levar vocês a concluírem junto comigo que:

O MAIOR REFORMADOR RELIGIOSO DE TODOS OS TEMPOS FOI JESUS, O FILHO DO HOMEM, O SERVO SOFREDOR.

No texto indicado pelo lecionário para hoje, vemos mais uma vez Jesus atuando profeticamente. Aqui, especificamente, denunciando a hipocrisia da religião oficial. Vejamos novamente os primeiros cinco versículos do nosso texto: “Então Jesus falou à multidão e aos seus discípulos. Ele disse: - Os mestres da Lei e os fariseus têm autoridade para explicar a Lei de Moisés. Por isso vocês devem obedecer e seguir tudo o que eles dizem. Porém não imitem as suas ações, pois eles não fazem o que ensinam. Amarram fardos pesados e os põem nas costas dos outros, mas eles mesmos não os ajudam, nem ao menos com um dedo, a carregar esses fardos.”

Ora, os mestres da lei e os fariseus eram os intérpretes oficiais das Escrituras Sagradas e, nesse sentido, tinham, sim, autoridade, reconhecida até por Jesus, desde que o que eles dissessem estivesse de acordo com os ensinamentos de Moisés. Mas há muito que eles haviam se esquecido do verdadeiro sentido e propósito da lei de Moisés. Criara-se uma série de regrinhas que de nada valiam, senão para oprimir as pessoas, além de outras que serviam para burlar, contornar mandamentos importantes. E o pior, eles, os fariseus mesmos – nas palavras de Jesus – não faziam o que ensinavam. Não eram dignos de que suas ações fossem imitadas. É um caso típico de referência àquele velho dito popular: “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

Assim, na medida em que suas atitudes não condiziam com suas palavras, eles perdiam, de fato, toda sua autoridade. Eram hipócritas! A esse respeito, Mateus, quando o Mestre terminou o sermão do monte, nos deixou registrado o seguinte: “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mt 7.28,29). Jesus fez, ensinou, ordenou e deu exemplo. É disso que advém a verdadeira autoridade.

Mais adiante, o nosso texto de hoje diz: “Tudo o que eles fazem é para serem vistos pelos outros. Vejam como são grandes os trechos das Escrituras Sagradas que eles copiam e amarram na testa e nos braços [filactérios: estojos com porções das Escrituras]! E olhem os pingentes grandes das suas capas [franjas: adorno que todo judeu piedoso usava para lembrar-lhe dos mandamentos de Deus]! Eles preferem os melhores lugares nos banquetes e os lugares de honra nas sinagogas. Gostam de ser cumprimentados com respeito nas praças e de ser chamados de ‘mestre’.”

É também Mateus quem registrou as palavras de Jesus falando sobre como os hipócritas fazem atos piedosos em público, a fim de serem vistos pelas pessoas (Mt 6). Ora, quem são esses hipócritas, senão os mesmos de quem estamos falando hoje? Sim, os mestres da lei e os fariseus! Sabe o que Jesus disse a respeito deles e de sua falsa piedade, fazendo publicamente tudo aquilo que se deveria fazer secretamente? Eles já receberam a sua recompensa. Qual recompensa? O serem honrados, glorificados, vistos e chamados de justos e piedosos pelas pessoas. Diante disso, Jesus nos mostra que temos duas opções com relação a nos mostrarmos aos outros: ou ostentamos uma imagem que não tem nada a ver com aquilo que de fato somos, como os hipócritas, ou assumimos o lugar que nos corresponde, em honestidade, sinceridade, verdade e humildade.

A parte final do texto de hoje nos diz assim: “E aqui na terra não chamem ninguém de pai porque vocês têm somente um Pai, que está no céu. Vocês não devem também ser chamados de ‘líderes’ porque vocês têm um líder, o Messias. Entre vocês, o mais importante é aquele que serve os outros. Quem se engrandece será humilhado, mas quem se humilha será engrandecido.”

É como se Jesus estivesse nos dizendo: “Só há um Mestre, só há um Pai, só há um líder, só há um Messias. Como vocês não podem assumir esses títulos, a única maneira que vocês têm de serem grandes é servindo, humilhando-se a si mesmos.” Quando todos e todas servirmos aos demais, aquilo que parecia uma carga pesadíssima – por estar mal dividida – será suportável. Aquilo que parecia humilhação será objeto de louvor.

Na Igreja não há lugar para “superiores” e “súditos”, mas tão somente para irmãos iguais, que têm um Pai comum e que seguem o mesmo Cristo. Na Igreja de Jesus não pode existir quem queira mandar nos outros, ou quem se considere a si mesmo mais importante, mais digno, mais honrado, mais capacitado do que os outros. A esse propósito, Paulo, escrevendo aos filipenses, advertiu: “Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo” (Fp 2.3). O autoritarismo não é uma falha de caráter, mas usurpação dos direitos que só Cristo tem sobre sua Igreja.

Na Igreja de Jesus não pode haver, como no judaísmo, uma estrutura de graus hierárquicos, conforme uma suposta diferente dignidade entre os membros da comunidade. Na Igreja de Jesus, títulos de honra, lugares reservados, luta por primeiros lugares não fazem nenhum sentido. Na Igreja de Jesus, só ao amor e ao serviço cabe o primeiro lugar.

A Igreja de Jesus deve anunciar profeticamente o reino de Deus. Ora, nesse Reino, só o Pai e o Filho ocupam lugar de honra. Nós, os crentes, iguais em dignidade, somos irmãos; entre nós, devemos nos amar e nos fazer servidores uns dos outros. Jesus, ao trazer à tona a hipocrisia dos fariseus, está nos alertando a respeito da tentação de mostrarmos o que não somos, de vendermos uma imagem nossa “corrigida e aumentada”, a fim de tão somente obtermos o aplauso e admiração dos outros, de vivermos de aparências e não do compromisso simples e humilde com o Evangelho. A mentira e a incoerência destroem a paz do coração, roubam a alegria e a serenidade, comprometem o testemunho, minam a comunidade e põem em xeque os fundamentos do Reino.

Agora, a bem da verdade, o texto de hoje e todo o restante do capítulo vinte e três de Mateus – os “ai de vocês, mestres da Lei e fariseus, hipócritas” – são principalmente para nós, líderes, que muitas vezes também não fazemos o que ensinamos e, ainda assim, temos a coragem de subir em um púlpito, abrir a Bíblia e pregar sobre como as pessoas devem conduzir suas vidas. As palavras duras de Jesus são para nós, líderes, que conclamamos os membros ao serviço e à missão, mas muitas vezes não saímos da nossa zona de conforto. As palavras de juízo de Jesus são para nós, líderes, que somos vaidosos, egocêntricos e gostamos de chamar a atenção, e que fazemos questão de ser chamados de reverendos/as, pastores/as, teólogos/as, doutores/as.

As imprecações de Jesus são para nós, líderes, que disputamos aos tapas cargos eclesiásticos ou indicações para viagens para outros estados ou para o exterior, que nos deixamos cegar pelo poder religioso-institucional e atrapalhamos as pessoas adentrarem o reino de Deus porque ficamos, inclusive, discutindo doutrinas ou política eclesiástica. As palavras incisivas de Jesus são para nós, líderes, que coamos mosquitos e engolimos camelos. Ou seja, permitimos desvios do dinheiro do altar, a má administração dos recursos da Igreja, o abuso do poder eclesiástico (e que são grandes camelos que permitimos passar porque eles também nos carregam); mas detectamos rapidamente qualquer dificuldade de temperamento ou deslize moral de uma ovelha que não tenha poder financeiro ou influência política no rebanho de Cristo.

As palavras de juízo de Jesus são para nós, túmulos pintados de branco, bonitos por fora, mas cheios de ossos de mortos e de podridão. O juízo de Jesus foi anunciado a nós, líderes, que, mesmo muitas vezes não fazendo aquilo que ensinamos, ousamos dizer que vocês precisam ser melhores cristãos e cristãs.

Ah! se fosse possível que os reformadores do século XVI fizessem um diagnóstico das igrejas protestantes nos últimos quatrocentos anos, que será que eles diriam? “A Igreja Reformada está sempre se reformando”? Ou, talvez, diriam: “A Igreja (novamente) deformada está sempre se deformando”? E Jesus, se ele aparecesse novamente em nossos dias, em nossas igrejas, o que será que ele falaria? “Eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século”? Ou diria: “Vim para o que era meu e os meus não me receberam”? Ou, quem sabe: “De fato, vos afirmo que nenhum profeta é bem recebido na sua própria terra” e atualizaria sobre nós, pretensos líderes, os “ais” do capítulo vinte e três de Mateus?

Diante de tudo isso, além de pedir a vocês, pequeno rebanho do Senhor, que nos perdoem a nós, líderes, por nossa não tão rara hipocrisia e – às vezes até bem comum – arrogância, peço que orem por nós, a fim de que sejamos dignos de lhes ministrar as palavras do Evangelho e de consagrar a vocês, em Eucaristia, o precioso corpo e o valioso sangue de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.