"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

sábado, 19 de novembro de 2011

Considerações sobre o corpo de Cristo (prédica)

Handall Fabrício Martins


TEXTO-BASE – MATEUS 18.15-20 (NTLH):
“- Se o seu irmão pecar [contra você], vá e mostre-lhe o seu erro. Mas faça isso em particular, só entre vocês dois. Se essa pessoa ouvir o seu conselho, então você ganhou de volta o seu irmão. Mas, se não ouvir, leve com você uma ou duas pessoas, para fazer o que mandam as Escrituras Sagradas. Elas dizem: ‘Qualquer acusação precisa ser confirmada pela palavra de pelo menos duas testemunhas [cf. Dt 19.15].’ Mas, se a pessoa que pecou não ouvir essas pessoas, então conte tudo à igreja. E, se ela não ouvir a igreja, trate-a como um pagão ou como um cobrador de impostos. - Eu afirmo a vocês que isto é verdade: o que vocês proibirem na terra será proibido no céu, e o que permitirem na terra será permitido no céu. - E afirmo a vocês que isto também é verdade: todas as vezes que dois de vocês que estão na terra pedirem a mesma coisa em oração, isso será feito pelo meu Pai, que está no céu. Porque, onde dois ou três estão juntos em meu nome, eu estou ali com eles.” Palavra da Salvação. Amém.
No texto do Evangelho indicado no calendário litúrgico para este domingo, Jesus nos dá algumas orientações práticas sobre como manter o funcionamento saudável daquilo que Paulo chama de corpo de Cristo, nós, sua Igreja, da qual ele, Jesus, é a cabeça. Especificamente, essas orientações têm como centro a temática que gira em torno dos polos pecado/arrependimento do irmão membro da comunidade de fé e como nós, Igreja, corpo de Cristo, devemos resolver a questão do pecado de um irmão penitente, arrependido ou não. Isto é, como, grosso modo, se procede a disciplina na Igreja.
Importante: se pecado, biblicamente falando, fosse algo que melindrasse a Deus, nem haveria necessidade da existência do texto de hoje. Pecado é, na Bíblia, desde o AT, aquilo que contamina e quebra as relações solidárias e fraternas que devem sempre reinar na comunidade de fé (= corpo de Cristo). É por isso que o pecado precisa ser extirpado (e não o pecador). Nesse sentido, Paulo já advertiu aos gálatas: “Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guardai-vos para que não sejais também tentados” (Gl 6.1). E também aos tessalonicenses: “Caso alguém não preste obediência à nossa palavra dada por esta epístola, notai-o; nem vos associeis com ele, para que fique envergonhado. Todavia, não o considereis por inimigo, mas adverti-o como irmão” (2Ts 3.14-15).
É bom, também, lembrar que todos nós somos igualmente pecadores. E não somos pecadores porque pecamos. Pecamos porque somos pecadores. Ou seja, o pecado faz parte da nossa natureza humana. Poderíamos, inclusive – fosse isso possível –, passar a vida inteira sem cometer um único deslize e, ainda assim, continuaríamos sendo pecadores. Nascemos e morremos pecadores. Quiçá arrependidos, mas pecadores.
O texto sob reflexão nesta manhã está inserido num contexto maior, que é o capítulo dezoito de Mateus. Aqui, a grande temática é – para além do círculo mais chegado dos doze – a preocupação com o conjunto maior dos discípulos, a quem Jesus, em Mateus, chama, metaforicamente, de crianças, pequeninos, ovelhas e, enfim, de irmãos e conservos. Percebe-se a grande apreensão que existia com relação ao risco de afastamento ou perda de qualquer membro do corpo, o que também se revela pelo incentivo ao exercício da tolerância e do perdão que os discípulos sempre devem uns para com os outros. E sobre este último aspecto – tolerância e perdão mútuos –, a razão é bem simples: Deus nos perdoou uma dívida impagável.
Se a Deus não devemos mais nada, o mesmo não ocorre com relação ao nosso irmão e ao nosso próximo. Novamente Paulo nos diz: A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei” (Rm 13.8). Também o amor é uma dívida impagável, mas, diferentemente, não podemos deixar de tentar liquidá-la, diariamente. E se digo isso é porque sem amor não pode haver nem tolerância nem perdão. Se o nosso corpo físico se nutre de comida e água, o corpo de Cristo somente sobrevive quando também é devidamente alimentado. Conforme Paulo: “Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor” (Ef 4.15-16).
1.            “- Se o seu irmão pecar [contra você], [e não existe pessoa que não peque] vá e mostre-lhe o seu erro. Mas faça isso em particular, só entre vocês dois. Se essa pessoa ouvir o seu conselho, então você ganhou de volta o seu irmão. Mas, se não ouvir, leve com você uma ou duas pessoas, para fazer o que mandam as Escrituras Sagradas. Elas [as Escrituras Sagradas] dizem: ‘Qualquer acusação precisa ser confirmada pela palavra de pelo menos duas testemunhas [cf. Dt 19.15].’ Mas, se a pessoa que pecou não ouvir essas pessoas, então conte tudo à igreja. E, se ela não ouvir a igreja, trate-a como um pagão ou como um cobrador de impostos.”
No texto paralelo do evangelho de Lucas, Jesus diz: “(...) Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o; se ele se arrepender, perdoa-lhe. Se, por sete vezes no dia, pecar contra ti e, sete vezes, vier ter contigo, dizendo: Estou arrependido, perdoa-lhe” (Lc 17.4-5). Na sequência mesma da passagem de Mateus que estamos vendo hoje, Jesus, em resposta à pergunta de Pedro sobre quantas vezes se deve perdoar, diz: “(...) Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mt 18.22).
À época da composição do evangelho de Mateus, a comunidade de judeus palestinenses que creram em Jesus estava passando por um momento de perseguição e de autoafirmação. Daí é que adveio a necessidade de se estabelecerem regras rígidas de disciplina, como vemos no texto. A determinação que se faz para tratar o impenitente “como um pagão ou como um cobrador de impostos” – que eram considerados pelos judeus o pior tipo de gente –, parece (notem bem: parece) destoar totalmente da proposta do Evangelho como um todo, em cujo centro está exatamente “o escândalo da graça”. E é por isso que não vamos nos deter nesse aspecto do texto.
Ora, o próprio Jesus e segundo o mesmo Mateus, em várias passagens, convivia com pagãos, pecadores, cobradores de impostos e prostitutas, fazendo muitas de suas refeições com eles, e até se hospedando na casa de alguns, o que significava, naqueles dias, máxima intimidade. Jesus chegou a afirmar que coletores de impostos e prostitutas estavam adentrando o Reino, e antes dos fariseus, pois estes não creram na pregação de João Batista, nem na dele, Jesus, ao passo que aqueles – coletores de impostos e meretrizes –, sim.
Pois bem, visto que: não existe pessoa que não peque; não existe pecado “maior” ou “menor”; e é do coração que procedem os maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias, etc.; é como se – no linguajar de Mateus – todos fôssemos coletores de impostos, pagãos, pecadores e prostitutas. Ou seja, o pecado está em nós, de qualquer jeito. Nossa luta é pra não deixar que ele se concretize em ações, pois estas, sim, vão ter consequências, maiores ou menores, no mundo social. E aí, a coisa pode se complicar. O fato é que estamos todos no mesmo barco.
Não obstante, é digno de nota o rito da disciplina pelo qual o pecador impenitente deve passar, segundo Mateus, pois ele não dá margem a coisas que, infelizmente, são muito comuns: mexericos, fofocas, maledicências, intrigas – coisas que contaminam todo o corpo, toda a igreja. Muitas vezes, nós falamos do acontecido pra todo mundo, menos com quem devemos, de fato, falar. É muito comum, também, valorizarmos em demasia as ofensas que os irmãos na fé nos fazem. Até a nossa suposta lógica – segundo a qual o ofensor é quem tem de vir até nós para pedir perdão – Jesus a inverte em Mateus 5.23-24: “Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta”. Paulo também trata desse assunto, quando fala que devemos ser “espirituais” (ou maduros na fé), em vez de “carnais” (imaturos na fé ou crianças em Cristo).  
2.  - Eu afirmo a vocês que isto é verdade: o que vocês proibirem [desligarem] na terra será proibido [desligado] no céu, e o que permitirem [ligarem] na terra será permitido [ligado] no céu. - E afirmo a vocês que isto também é verdade: todas as vezes que dois de vocês que estão na terra pedirem a mesma coisa em oração, isso será feito pelo meu Pai, que está no céu. Porque, onde dois ou três estão juntos em meu nome, eu estou ali com eles.”
O contexto imediato da passagem, segundo já vimos, tem a ver com os trâmites da disciplina do irmão pecador na Igreja. Também já vimos que, no contexto maior, a Igreja passava por perseguição e carecia de autoafirmação e, portanto, de regras rígidas de disciplina (as quais, em última instância, tinham o objetivo de trazer os irmãos de volta, e não afastá-los). É nesse contexto que se afirma a autoridade divinamente transferida à Igreja quanto ao que ela pode proibir (desligar) ou permitir (ligar). Ou, ainda, quanto ao pronto atendimento, da parte de Deus, àquilo que se pedir concordemente em oração. Só falamos isso, novamente, para situar o texto em seu contexto. Não é, pois, o que nos interessa hoje.
No livro dos Atos, nos é dito que os discípulos perseveravam unânimes, ao passo que Deus lhes acrescentava os que iam sendo salvos. Também é dito que todos os que creram pensavam e sentiam do mesmo modo. Paulo nos adverte a que falemos, pensemos e sintamos a mesma coisa; que não haja divisões entre nós; que sejamos inteiramente unidos (e unidos de alma!), na mesma disposição mental e no mesmo parecer. Unanimidade, concórdia, mesmo pensamento e sentimento: essa é a lógica que deve pautar o funcionamento do corpo de Cristo! Utopia? Pois é justamente essa a palavra que melhor qualifica o reino de Deus, inaugurado por Jesus. Voltando à metáfora do corpo humano, nele tudo funciona conjunta, sistêmica, organicamente em direção a um só objetivo: a manutenção do corpo vivo. Aceitemos nós ou não, Lucas, o escritor dos Atos, atribui o crescimento da Igreja – tanto quantitativa, quanto qualitativamente – exatamente a essa utopia, que fazia com que a Igreja, nas palavras dele, caísse na graça ou ganhasse a simpatia de todo o povo. 
A única possibilidade que temos, de fato, de ligar, desligar ou concordar acerca de qualquer coisa na terra e isso ser corroborado no céu é que isso coincida com a vontade de Deus. De novo, Paulo nos dá uma ótima orientação: “Não vivam como vivem as pessoas deste mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio de uma completa mudança da mente de vocês. Assim vocês conhecerão a vontade de Deus, isto é, aquilo que é bom, perfeito e agradável a ele” (Rm 12.2).
Vejamos quão grande é nossa responsabilidade enquanto igreja, corpo de Cristo! As pessoas que Deus tem nos confiado para formar e discipular, sobre cada uma delas nós temos um poder de influência às vezes inimaginável. Uma palavra mal dita pode ter consequências terríveis. Por outro lado, palavras bem ditas são bênção! Que Deus nos ajude! Amém!

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