"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Jesus, o reformador (prédica, a propósito da Reforma Protestante)

Handall Fabrício Martins

Mateus 23.1-12 (NTLH):

“Então Jesus falou à multidão e aos seus discípulos. Ele disse: - Os mestres da Lei e os fariseus têm autoridade para explicar a Lei de Moisés. Por isso vocês devem obedecer e seguir tudo o que eles dizem. Porém não imitem as suas ações, pois eles não fazem o que ensinam. Amarram fardos pesados e os põem nas costas dos outros, mas eles mesmos não os ajudam, nem ao menos com um dedo, a carregar esses fardos. Tudo o que eles fazem é para serem vistos pelos outros. Vejam como são grandes os trechos das Escrituras Sagradas que eles copiam e amarram na testa e nos braços! E olhem os pingentes grandes das suas capas! Eles preferem os melhores lugares nos banquetes e os lugares de honra nas sinagogas. Gostam de ser cumprimentados com respeito nas praças e de ser chamados de ‘mestre’. Porém vocês não devem ser chamados de ‘mestre’, pois todos vocês são membros de uma mesma família e têm somente um Mestre. E aqui na terra não chamem ninguém de pai porque vocês têm somente um Pai, que está no céu. Vocês não devem também ser chamados de ‘líderes’ porque vocês têm um líder, o Messias. Entre vocês, o mais importante é aquele que serve os outros. Quem se engrandece será humilhado, mas quem se humilha será engrandecido.” Palavra da Salvação. Amém.

“(...) Que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, nos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos do nosso coração, para sabermos qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza da glória da sua herança nos santos e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia da força do seu poder” (Ef 1.17-19, adaptado).

Antes de começar a prédica propriamente dita, gostaria de fazer uma observação: todas as vezes em que textos bíblicos forem lidos por mim, a versão utilizada é a ARA, 2.ª edição.

No culto de hoje, estamos celebrando os 494 anos da Reforma Protestante, cuja data emblemática foi 31/10/1517, dia em que o monge agostiniano alemão Martinho Lutero afixou as famosas 95 teses na entrada da Catedral de Wittenberg. Grosso modo, Reforma Protestante foi o conjunto de acontecimentos que levaram vários grupos, até nações inteiras, a romper com a Igreja Católica Romana, dando origem às primeiras confissões evangélicas.

Bem, espero não começar criando polêmica. Vamos ver. Quem foi o maior reformador religioso, dentro desta nossa grande tradição judaico-cristã? Calvino? Lutero? Zwínglio? Mas, teríamos que falar, da mesma forma, por questão de justiça histórica, dos chamados pré-reformadores, por exemplo, Huss e Wycliff. E aí, então, teríamos de retroceder ainda mais no tempo até os profetas do Antigo Testamento, como Samuel, Amós, Oseias, Miqueias, Jeremias, Isaías, pois todos estes igualmente fizeram críticas agudas ao modo como o povo ou os sacerdotes praticavam a religião em Israel.

Também João, o batizador – que alguns gostam de chamar de “batista” – foi um profeta, resgatando, de certa maneira, a tradição de Elias. E, nesse sentido, Jesus – além de Filho de Deus, Messias, Senhor, Salvador – também foi profeta. Porém, foi o maior de todos. Maior até que Moisés, conforme a promessa de Deuteronômio 18.15.

Ora, Jesus nasceu, viveu e morreu como judeu, bem como todos os seus seguidores das primeiras gerações. A diferença consistia no fato de que estes criam que Jesus havia sido o Messias esperado e prometido no AT, sendo apelidados como os “do caminho” e, um pouco depois, “cristãos”, pejorativamente. Mas, no segundo século de nossa era, o legado de Jesus tornara-se tão forte e, de certa maneira, tão incompatível com o judaísmo, que os “do caminho”, os “cristãos”, foram excomungados, expulsos do judaísmo. Jesus, cerca de um século depois de sua morte, conseguiu fazer surgir uma nova religião: o cristianismo.

Jesus disse que veio não para revogar a lei ou os profetas, mas para cumpri-los. Todavia, quando Jesus faz uso da fórmula “ouvistes que foi dito: [...] eu, porém, vos digo:” (cf. p. ex., Mt 5.21, 22, 27, 28), isso representa uma ruptura com a piedade judaica e o protesto de Jesus contra a interpretação equivocada da lei, e não contra a própria lei. Cristo não revogou, mas reinterpretou, sim, a lei de Moisés, o que aprofundou e revelou o seu verdadeiro sentido. Jesus estabeleceu novos critérios de interpretação da Escritura, quais sejam o amor, a graça, o perdão, a misericórdia e a justiça, revelados concretamente no valor que ele atribuiu à pessoa humana. Jesus humanizou a palavra de Deus. Ora, não foi ele mesmo a palavra encarnada, Palavra feita gente? Mas tudo o que eu tenho dito até aqui – já que hoje é culto da Reforma – foi para levar vocês a concluírem junto comigo que:

O MAIOR REFORMADOR RELIGIOSO DE TODOS OS TEMPOS FOI JESUS, O FILHO DO HOMEM, O SERVO SOFREDOR.

No texto indicado pelo lecionário para hoje, vemos mais uma vez Jesus atuando profeticamente. Aqui, especificamente, denunciando a hipocrisia da religião oficial. Vejamos novamente os primeiros cinco versículos do nosso texto: “Então Jesus falou à multidão e aos seus discípulos. Ele disse: - Os mestres da Lei e os fariseus têm autoridade para explicar a Lei de Moisés. Por isso vocês devem obedecer e seguir tudo o que eles dizem. Porém não imitem as suas ações, pois eles não fazem o que ensinam. Amarram fardos pesados e os põem nas costas dos outros, mas eles mesmos não os ajudam, nem ao menos com um dedo, a carregar esses fardos.”

Ora, os mestres da lei e os fariseus eram os intérpretes oficiais das Escrituras Sagradas e, nesse sentido, tinham, sim, autoridade, reconhecida até por Jesus, desde que o que eles dissessem estivesse de acordo com os ensinamentos de Moisés. Mas há muito que eles haviam se esquecido do verdadeiro sentido e propósito da lei de Moisés. Criara-se uma série de regrinhas que de nada valiam, senão para oprimir as pessoas, além de outras que serviam para burlar, contornar mandamentos importantes. E o pior, eles, os fariseus mesmos – nas palavras de Jesus – não faziam o que ensinavam. Não eram dignos de que suas ações fossem imitadas. É um caso típico de referência àquele velho dito popular: “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

Assim, na medida em que suas atitudes não condiziam com suas palavras, eles perdiam, de fato, toda sua autoridade. Eram hipócritas! A esse respeito, Mateus, quando o Mestre terminou o sermão do monte, nos deixou registrado o seguinte: “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mt 7.28,29). Jesus fez, ensinou, ordenou e deu exemplo. É disso que advém a verdadeira autoridade.

Mais adiante, o nosso texto de hoje diz: “Tudo o que eles fazem é para serem vistos pelos outros. Vejam como são grandes os trechos das Escrituras Sagradas que eles copiam e amarram na testa e nos braços [filactérios: estojos com porções das Escrituras]! E olhem os pingentes grandes das suas capas [franjas: adorno que todo judeu piedoso usava para lembrar-lhe dos mandamentos de Deus]! Eles preferem os melhores lugares nos banquetes e os lugares de honra nas sinagogas. Gostam de ser cumprimentados com respeito nas praças e de ser chamados de ‘mestre’.”

É também Mateus quem registrou as palavras de Jesus falando sobre como os hipócritas fazem atos piedosos em público, a fim de serem vistos pelas pessoas (Mt 6). Ora, quem são esses hipócritas, senão os mesmos de quem estamos falando hoje? Sim, os mestres da lei e os fariseus! Sabe o que Jesus disse a respeito deles e de sua falsa piedade, fazendo publicamente tudo aquilo que se deveria fazer secretamente? Eles já receberam a sua recompensa. Qual recompensa? O serem honrados, glorificados, vistos e chamados de justos e piedosos pelas pessoas. Diante disso, Jesus nos mostra que temos duas opções com relação a nos mostrarmos aos outros: ou ostentamos uma imagem que não tem nada a ver com aquilo que de fato somos, como os hipócritas, ou assumimos o lugar que nos corresponde, em honestidade, sinceridade, verdade e humildade.

A parte final do texto de hoje nos diz assim: “E aqui na terra não chamem ninguém de pai porque vocês têm somente um Pai, que está no céu. Vocês não devem também ser chamados de ‘líderes’ porque vocês têm um líder, o Messias. Entre vocês, o mais importante é aquele que serve os outros. Quem se engrandece será humilhado, mas quem se humilha será engrandecido.”

É como se Jesus estivesse nos dizendo: “Só há um Mestre, só há um Pai, só há um líder, só há um Messias. Como vocês não podem assumir esses títulos, a única maneira que vocês têm de serem grandes é servindo, humilhando-se a si mesmos.” Quando todos e todas servirmos aos demais, aquilo que parecia uma carga pesadíssima – por estar mal dividida – será suportável. Aquilo que parecia humilhação será objeto de louvor.

Na Igreja não há lugar para “superiores” e “súditos”, mas tão somente para irmãos iguais, que têm um Pai comum e que seguem o mesmo Cristo. Na Igreja de Jesus não pode existir quem queira mandar nos outros, ou quem se considere a si mesmo mais importante, mais digno, mais honrado, mais capacitado do que os outros. A esse propósito, Paulo, escrevendo aos filipenses, advertiu: “Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo” (Fp 2.3). O autoritarismo não é uma falha de caráter, mas usurpação dos direitos que só Cristo tem sobre sua Igreja.

Na Igreja de Jesus não pode haver, como no judaísmo, uma estrutura de graus hierárquicos, conforme uma suposta diferente dignidade entre os membros da comunidade. Na Igreja de Jesus, títulos de honra, lugares reservados, luta por primeiros lugares não fazem nenhum sentido. Na Igreja de Jesus, só ao amor e ao serviço cabe o primeiro lugar.

A Igreja de Jesus deve anunciar profeticamente o reino de Deus. Ora, nesse Reino, só o Pai e o Filho ocupam lugar de honra. Nós, os crentes, iguais em dignidade, somos irmãos; entre nós, devemos nos amar e nos fazer servidores uns dos outros. Jesus, ao trazer à tona a hipocrisia dos fariseus, está nos alertando a respeito da tentação de mostrarmos o que não somos, de vendermos uma imagem nossa “corrigida e aumentada”, a fim de tão somente obtermos o aplauso e admiração dos outros, de vivermos de aparências e não do compromisso simples e humilde com o Evangelho. A mentira e a incoerência destroem a paz do coração, roubam a alegria e a serenidade, comprometem o testemunho, minam a comunidade e põem em xeque os fundamentos do Reino.

Agora, a bem da verdade, o texto de hoje e todo o restante do capítulo vinte e três de Mateus – os “ai de vocês, mestres da Lei e fariseus, hipócritas” – são principalmente para nós, líderes, que muitas vezes também não fazemos o que ensinamos e, ainda assim, temos a coragem de subir em um púlpito, abrir a Bíblia e pregar sobre como as pessoas devem conduzir suas vidas. As palavras duras de Jesus são para nós, líderes, que conclamamos os membros ao serviço e à missão, mas muitas vezes não saímos da nossa zona de conforto. As palavras de juízo de Jesus são para nós, líderes, que somos vaidosos, egocêntricos e gostamos de chamar a atenção, e que fazemos questão de ser chamados de reverendos/as, pastores/as, teólogos/as, doutores/as.

As imprecações de Jesus são para nós, líderes, que disputamos aos tapas cargos eclesiásticos ou indicações para viagens para outros estados ou para o exterior, que nos deixamos cegar pelo poder religioso-institucional e atrapalhamos as pessoas adentrarem o reino de Deus porque ficamos, inclusive, discutindo doutrinas ou política eclesiástica. As palavras incisivas de Jesus são para nós, líderes, que coamos mosquitos e engolimos camelos. Ou seja, permitimos desvios do dinheiro do altar, a má administração dos recursos da Igreja, o abuso do poder eclesiástico (e que são grandes camelos que permitimos passar porque eles também nos carregam); mas detectamos rapidamente qualquer dificuldade de temperamento ou deslize moral de uma ovelha que não tenha poder financeiro ou influência política no rebanho de Cristo.

As palavras de juízo de Jesus são para nós, túmulos pintados de branco, bonitos por fora, mas cheios de ossos de mortos e de podridão. O juízo de Jesus foi anunciado a nós, líderes, que, mesmo muitas vezes não fazendo aquilo que ensinamos, ousamos dizer que vocês precisam ser melhores cristãos e cristãs.

Ah! se fosse possível que os reformadores do século XVI fizessem um diagnóstico das igrejas protestantes nos últimos quatrocentos anos, que será que eles diriam? “A Igreja Reformada está sempre se reformando”? Ou, talvez, diriam: “A Igreja (novamente) deformada está sempre se deformando”? E Jesus, se ele aparecesse novamente em nossos dias, em nossas igrejas, o que será que ele falaria? “Eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século”? Ou diria: “Vim para o que era meu e os meus não me receberam”? Ou, quem sabe: “De fato, vos afirmo que nenhum profeta é bem recebido na sua própria terra” e atualizaria sobre nós, pretensos líderes, os “ais” do capítulo vinte e três de Mateus?

Diante de tudo isso, além de pedir a vocês, pequeno rebanho do Senhor, que nos perdoem a nós, líderes, por nossa não tão rara hipocrisia e – às vezes até bem comum – arrogância, peço que orem por nós, a fim de que sejamos dignos de lhes ministrar as palavras do Evangelho e de consagrar a vocês, em Eucaristia, o precioso corpo e o valioso sangue de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

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