"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Fundamentalismo evangélico - ameaça à democracia

disponível em: http://palavraaberta.com.br/fundamentalismo-evangelico-ameaca-a-democracia/

Alguns dias atrás, a pedido do autor, retiramos um artigo do rev. Carlos Eduardo Calvani, pois o mesmo repercutiu de tal forma em Campo Grande, tanto de forma positiva quanto negativa, que ele e sua família e a comunidade começaram a receber ameaças. O artigo acabou sendo até tema de discussão na câmara dos vereadores.
Mas no sentido de seu dever com o ministério profético, o rev. Calvani nos enviou novamente o artigo para que seja publicado. Parabéns rev. Calvani e família, parabéns comunidade da Paróquia da Inclusão, pela coragem no exercício deste tão importante ministério.
Aproveitamos para solicitar aos leitores, que colaborem com a missão da Paróquia da Inclusão a URL do site da Paróquia da Inclusão é:
Segue o artigo.
No dia 26/08, feriado municipal, a Prefeitura de Campo Grande organizou uma “Marcha para Jesus”. O Diário Oficial do Município publicou dias antes os recursos públicos empenhados pela Prefeitura para financiar a Marcha através da contratação de carros-de-som, cantores gospel, etc. Na mesma semana escrevi um texto sobre o assunto e o divulguei na mídia virtual. O site “Campo Grande News” o publicou com cortes alegando ser muito extenso e concentrando-se apenas na questão política.
            Os cortes editoriais do “Campo Grande News” prejudicaram o entendimento do texto que faz uma crítica específica ao Fundamentalismo Evangélico e não a todos os evangélicos (conforme está escrito no texto maior e original que, inclusive, reconhece e cita teólogos evangélicos que também criticam Brasil afora o avanço desse movimento, e documentos do CONIC, Koinonia, Fé-Brasil, etc). Todos os comentários negativos que recebi apenas serviram para confirmar a ideia central do texto. Estou firme na convicção de que somente pessoas ingênuas que acreditam (ou mesmo concordam) com Malafaia, Feliciano, Waldemiro, Edir Macedo, etc, é que reagiram negativamente.
            Em virtude das reações iradas, telefonemas anônimos e emails ameaçadores, optei por retirar temporariamente da internet o site da Capela da Inclusão, a fim de preservar as fotos e imagens de nossa comunidade, especialmente das crianças. Levei à Delegacia de Polícia Civil um email ameaçador cujo I.P. foi identificado como procedente do escritório de uma Igreja Pentecostal da cidade. A referida “igreja” foi comunicada e alertada que se novas ameaças se repetissem seria aberto um B.O. No domingo dia 01 realizamos o culto na casa de uma de nossas famílias, seguido por confraternização. O apoio da comunidade foi claro e visível, com participação maciça, pois muitos já tinham lido o pequeno livro do CEBI “Fundamentalismos – relação entre Religião, Política e Direitos Humanos”, distribuído à comunidade pelo Bispo Naudal quando de sua visita. Além disso, após a avalanche de comentários contrários ao nosso posicionamento, nos últimos dias aumentou consideravelmente o número de comentários favoráveis, alguns inclusive dizendo: “achei que o reverendo estava sendo exagerado, mas agora estou vendo que ele estava certo”.
            Algumas pessoas, embora concordem com o conteúdo não apreciaram o estilo e a forma. Esclareço que o estilo redatorial acompanha uma das propostas da Teologia Narrativa, muito estudada nos meios acadêmicos. A Teologia Narrativa propõe, entre outras coisas, que o estilo de comunicação da Igreja deve ser o mesmo das Escrituras. Ou seja, partindo da compreensão das formas literárias bíblicas, a comunicação cristã com a sociedade para ser mais eficaz deve evitar os longos textos acadêmicos e adotar um estilo que adapta o conteúdo à forma. Assim, por exemplo, textos de glorificação e exaltação devem ser escritos como doxologias; textos de oração, súplica e lamentação devem acompanhar o estilo dos Salmos; textos históricos devem acompanhar o estilo bíblico de narrativas, sagas, lendas, etc; textos de cunho catequético e pastoral devem seguir o estilo das Epístolas; textos de cunho apocalíptico devem acompanhar também esse estilo e naturalmente, textos de denúncia devem seguir o estilo literário dos profetas. Meu texto foi escrito de acordo com esses parâmetros – linguagem curta, direta, com avisos e advertências. Sempre lemos os textos proféticos na liturgia e os elogiamos e admiramos. Não deveríamos ter medo de utilizar o mesmo estilo quando necessário.
            Em relação ao conteúdo do texto, não tenho qualquer motivo para voltar atrás. Em muitas de nossas reuniões ou em conversas de bastidores, muitos de nós comentamos e lamentamos o avanço do Fundamentalismo evangélico, mas às vezes falta-nos coragem para denunciá-lo. Aliás, isso foi comentado na última reunião da JUNET quando acompanhamos uma breve reflexão do Prof. Bittencourt sobre os avanços do Fundamentalismo Religioso. Os acontecimentos recentes no Egito revelam o quão perigoso é o extremismo religioso, independente da tradição religiosa. Os fundamentalismos islâmicos, cristãos, judeus e hindus já deram provas suficientes de serem uma gestão autoritária da fé e da religiosidade. Isso está muito bem documentado, inclusive em textos do CEBI, Fé-Brasil e outros, que são lidos e estudados em nossas comunidades.
            Devo informar também que a polêmica causada em Campo Grande está ligada a questões políticas locais. O prefeito de Campo Grande é oriundo do jornalismo policial estilo Ratinho e foi eleito com apoio das igrejas evangélicas locais. Atualmente está respondendo a vários processos e há uma proposta de CPI circulando na Câmara para cassá-lo. O vice-prefeito é pastor pentecostal intimamente ligado ao grupo de Silas Malafaia e Feliciano. Grande parte da bancada de apoio ao prefeito é formada também por pastores pentecostais da IURD, Assembléia de Deus e outras igrejas menores. Essa informação é importante para avaliarmos que a repercussão do texto não foi apenas por motivos religiosos, mas políticos (inclusive o texto foi alvo de comentários em uma sessão da Câmara de Vereadores na mesma semana). Hoje mesmo (05/09) está acontecendo um movimento popular de ocupação da Câmara exigindo transparência e outras. (notícias já estão sendo divulgadas nos sites da cidade).
            Finalmente, expresso meu agradecimento a todas as irmãs e irmãos da IEAB e de outras Igrejas evangélicas (de Campo Grande e de outros lugares) que enviaram mensagens de apoio. Lamentamos apenas o fato de estarmos tão isolados e distantes, mas as mensagens de apoio que chegam de longe nos asseguram que não estamos sozinhos. Falta-nos apenas uma articulação nacional mais estruturada e corajosa para fazer frente ao avanço do Fundamentalismo.
Estou consciente de que, no momento, é hora de silenciar um pouco, pois a comunidade é pequena e temporariamente já incomodamos demais os poderes estabelecidos. Mas estamos vigilantes, acompanhando o que ouvimos no Evangelho domingos atrás: “vocês sabem identificar os sinais no céu, mas não conseguem identificar os sinais de nossa época?”. As muitas palavras de apoio recebidas nos fazem acreditar que, de alguma maneira, cumpre-se em nossa comunidade a mesma acusação dirigida aos missionários cristãos em Tessalônica: “aqueles que estão incomodando o mundo chegaram à nossa cidade” (Atos 17.6).
Confira abaixo o texto original:
Fundamentalismo evangélico – ameaça à democracia”
 Campo Grande não merecia, na comemoração dos seus 114 anos de emancipação, o desprazer de assistir a tal “Marcha para Jesus” organizada por pastores-políticos e políticos-pastores reunindo cerca de quarenta mil fanáticos para ouvir o “mais do mesmo” – as bobagens retrógradas de Silas Malafaia, Robson Rodovalho e outros – “nós vamos tomar os meios de comunicação e as redes sociais”. Em outros tempos, tal frase seria compreendia como ameaça de golpe político.
O termo “evangélico” hoje foi cooptado por grupos radicais e já não expressa seu real sentido
Que vergonha imaginar que no Brasil, entre os anos 40 e 60, o termo “evangélico” designava cristãos que optavam por viver sua fé fora da Igreja Católica Romana, pautando-se pelos princípios da Reforma Protestante do século XVI. Naquela época a palavra “pastor” impunha autoridade e respeito até mesmo entre os católicos-romanos. Pastor era símbolo de alguém honesto, sábio, conhecedor das Escrituras e capaz de dialogar em ambientes universitários. Sim, as igrejas evangélicas eram conservadoras, mas não eram fanáticas. Não se viam pastores pulando e esbravejando nos púlpitos; os cultos sóbrios não eram “shows da fé”; ninguém ousava cobrar prosperidade material de Deus, mas entendia que o estudo, o trabalho honesto, a moderação nos gastos e a liberalidade trariam consequentemente melhorias na vida familiar e financeira.
Nos anos 70, as igrejas protestantes sérias, preocupadas com seu baixo crescimento quantitativo, começaram a abrir a guarda para os pentecostais. Esperavam que todo aquele ânimo revertesse em crescimento. Os pastores que não aceitavam o ridículo pentecostal eram chamados “tradicionalistas”. Mas eles estavam certos. O movimento pentecostal das classes mais pobres e o carismatismo reacionário da classe-média só trouxeram prejuízos para as Igrejas Protestantes. O zelo pela educação teológica foi deixado de lado; afinal, era preciso “pegar leve” com os coitadinhos que não conseguiam estudar teologia, línguas bíblicas, liturgia, etc… As Igrejas Protestantes chocaram ovos de serpente em seu meio; criaram cobras e agora não sabem como deter sua proliferação. Todas as iniciativas institucionais para criar um mínimo de ordem através da antiga Confederação Evangélica Brasileira ou AEvB (Aliança Evangélica Brasileira) foram tomadas de assaltos pelas hordas e legiões fanáticas, capitaneadas por pastores poderosos. Os resultados visíveis foram os múltiplos cismas e divisões dentro das igrejas históricas e a constante subdivisão de igrejolas de porta-de-esquina.
Hoje as palavras “evangélico” e “pastor” designam exatamente o oposto – ambição desenfreada; uso abusivo do nome de Deus em vão; mantras ridículos repetidos exaustivamente e atribuídos ao Espírito Santo; constantes reportagens na mídia sobre pastores fraudulentos que exploram a boa-fé das pessoas mais humildes ou que se aproveitam da ignorância da classe-média depressiva e consumista. Os protestantes “tradicionais” agora até evitam usar o termo “evangélico” por vergonha de se identificarem com os que se apoderaram desse termo. Os “evangélicos” de hoje não são evangélicos. São oportunistas ávidos pelo poder na sociedade. Esse movimento fanático e extremista nada tem a ver com os princípios da Reforma Protestante ou com Igrejas sérias e tradicionais.
fundamentalismo

Após terem se infiltrado em várias igrejas, tentam também se infiltrar na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. São acolhidos em nossas paróquias mas não querem mudar seus princípios. Ao contrário – querem mudar a Igreja que os acolheu. Reclamam do Livro de Oração Comum; reclamam da Liturgia; reclamam dos hinos; reclamam do ministério episcopal; menosprezam os sacramentos; desdenham da educação teológica séria; criticam os valores éticos que defendemos; ironizam e fazem piadas de nossos irmãos e irmãs gays e lésbicas, passam por cima dos cânones alegando que o que importa é o “Espírito” e não a letra… e nem sempre encontram autoridades dispostas a coloca-los em seu lugar. Não tenho dúvidas: pessoas ligadas a esses movimentos ditos “evangélicos, carismáticos e pentecostais” só contribuíram para abaixar o nível do ministério anglicano no Brasil.
Há uma longa tradição no anglicanismo de luta contra o fundamentalismo. O movimento puritano que quase destruiu a Igreja da Inglaterra levou a uma guerra civil, destruiu templos, imagens, órgãos de tubos e exilou bispos. Porém, sempre houve os que resistiram e, ao final, o fundamentalismo foi derrotado pelo bom senso. Mais recentemente é o bispo John Spong que tem levantado essa bandeira nos Estados Unidos. Mesmo que muitos não concordemos com algumas de suas exegeses é preciso reconhecer o valor do ministério desse bispo em ser um dos poucos que publicamente protestava contra o fundamentalismo.
O fundamentalismo religioso busca o poder político
O movimento evangélico hoje é um dos maiores perigos para a sociedade brasileira e o Estado Laico. Malafaia, Feliciano, Rodovalho, Macedo, R.R. Soares e outros nomes menores que estão despontando (e outros que ainda despontarão) são a pior espécie de fanatismo religioso possível. Alguém em são consciência e com um mínimo de instrução ou sensibilidade consegue acreditar neles e em seus discursos? Somente os analfabetos funcionais, que pouco lêem (aliás, sequer a Bíblia lêem) os apoiam.
Em 1994 quando organizaram a primeira “marcha para Jesus” na cidade de Londrina (PR), escrevi um artigo no jornal da cidade dizendo que aquela manifestação era sociologicamente igual às “paradas gays” – expressão de um grupo que queria visibilidade. Na época eu lecionava em um Seminário Evangélico. No mesmo dia em que o artigo foi publicado, os organizadores foram lá, exigir minha demissão. Um deles era um presbítero que injetava dinheiro na denominação e posteriormente foi preso várias vezes por contrabando e envolvimento em cartel de postos de gasolina; o outro era médico, e no ano seguinte foi cassado no CRM do Paraná por praticar atos libidinosos em suas pacientes. Mas estavam lá, liderando a “marcha para Jesus”. Portanto, esqueçam qualquer possibilidade de contra-argumentação razoável. Eles não entendem o significado das palavras “dialética’, “princípio do contraditório”, “direito à liberdade de opinião”. Eles sempre tentarão calar todos que não concordam com eles. Afinal, “Deus” fala com eles diretamente.
Não estou escrevendo nada de muito original. Ricardo Gondim há algum tempo escreveu um belo artigo intitulado: “Deus nos livre de um país evangélico” (http://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/deus-nos-livre-de-um-brasil-evangelico/ ); Ricardo Quadros Gouvêa, outro grande teólogo publicou tempos atrás o excelente livro “O Anticristo” (estudo exegético, histórico e teológico sério e criterioso com profundas implicações práticas em relação a tudo isso que escrevi acima). O pastor batista Ed René Kivitz também tem feito constantes denúncias. O grupo “Triângulo Rosa” divulgou outro excelente texto na época da polêmica “Feliciano” (http://ciatriangulorosa.info/?p=329 ), o CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs) já se pronunciou, juntamente com outros movimentos cristãos… parece que de nada adianta. Os “evangélicos” não lêem. Se lêem, não entendem.
Não nos iludamos. Os evangélicos têm um projeto de tomada de poder na sociedade brasileira. Eles já atuam subterraneamente. No Rio de Janeiro há inúmeras denúncias de “pastores” que se aliam a traficantes que os protegem e usando de seu “poder simbólico”, solicitam aos traficantes que proíbam cultos afro-brasileiros em regiões por eles dominadas. Os evangélicos têm um projeto político muito perigoso para o Brasil. Utilizam as Escrituras Sagradas do modo como lhes convém, para interferir na Comissão de Direitos Humanos, para propor ou alterar leis e infringir descaradamente as cláusulas pétreas da Constituição Federal. Eles se infiltram nos partidos e conseguem ser eleitos para cargos no executivo e no legislativo. Mas eles não têm fidelidade partidária nem princípios sociais claros. São mesquinhos e egoístas. Seus princípios são os da promiscuidade “igreja-estado”. No fundo, o que desejam é acabar com as manifestações religiosas com as quais não compartilham, sejam elas católico-romanas, espíritas, do candomblé, umbanda ou de qualquer outra religião que não a deles; desejam interferir na orientação sexual privada das pessoas “em nome de Deus”; fazem acusações levianas de que o movimento LGBT deseja acabar com as famílias; querem dominar o Ensino Religioso nas Escolas Públicas e, se conseguirem tomar o poder, não hesitarão em se infiltrar nas forças armadas utilizando o potencial bélico brasileiro para seus objetivos.
Sim, matarão se for preciso, invocando textos bíblicos; sim, destruirão o “Cristo Redentor” e qualquer outro monumento de outra religião; sim, se tiverem pleno poder proibirão o carnaval, festas juninas, romarias marianas, terreiros de candomblé e exigirão conversão forçada a seu modelo de vida e à sua religião; o fundamentalismo que os inflama não terá qualquer restrição em proibir shows populares, biquínis nas praias e utilizarão armas químicas para fazer valer seus ideais. Viveremos um “talibã evangélico”, com homens com o mesmo olhar raivoso de malafaia, e gays internados em campos de concentração para que sejam “curados”. Acham que estou exagerando? Deixem que eles tomem o poder e verão se o nosso futuro não será esse – preparem as burcas:

Rev. Carlos Eduardo Calvani  é mestre em teologia, coordenador da JUNET e exerce ministério missionário em Campo Grande MS.