"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

sexta-feira, 26 de março de 2010

TEOLOGAR

(Handall Fabrício Martins)

No meu “Estatuto dos Poetas”, deixei implícito – para alguns, talvez, bem claro – que a teologia é (também pra mim) apenas mais uma das várias maneiras possíveis de se encarar, interpretar e descrever a realidade; mais uma ao lado de outras, como a história, a antropologia, a sociologia, etc. É o que muitos chamam de “reserva de sentido” ou, ainda, “cosmovisão”, “mundividência”; “visão de mundo”, portanto. Assim, o que me proponho a fazer é “pensar a realidade teologicamente, a partir dos referenciais ‘Bíblia’ e ‘cristianismo’”.
Creio (e vou logo avisando que não sou uma exceção; não, sou apenas mais um dentre tantos) ser impossível “falar de Deus”, como pode sugerir o vocábulo “teologia”. Tradicionalmente, sempre se falou em teologia a partir do significado etimológico do vocábulo de origem grega: Theós (Deus)+ logía (estudo, descrição). Logo, assim, teologia seria “
a ciência ou estudo que se ocupa de Deus, de sua natureza e seus atributos e de suas relações com o homem e com o universo”. Mas, tendo em vista que é impossível colocar Deus num microscópio, dissecá-lo, ou analisá-lo como uma realidade objetiva, tampouco é possível “falar de Deus”.
Não obstante isso, é plenamente viável analisar as “experiências” (digamos assim, na ausência de termo mais preciso) que o ser humano tem com o “numinoso”, “transcendente”, “divino”, “absoluto” ou outro predicado qualquer que venha a ser atribuído ao “totalmente outro” a quem se convencionou chamar de “deus (Deus)”. É o fenômeno religioso que pode ser objeto de análise, seja em âmbito individual ou coletivo, seja em nível institucional ou particular. Logo – alinhando-me a Feuerbach –, acredito que não existe, de fato, teologia. O que resta, então, é apenas e tão somente antropologia, pois o homem só pode lidar com aquilo que lhe é próximo, contíguo.
Engraçado, isso: começamos por teologia e terminamos com antropologia. Não seria, então, o caso de falarmos em Ciências da Religião? Talvez. A teologia tradicional mesma - cristã, claro, que é a única que pode ser assim chamada; as demais só o são por analogia - tem de necessariamente lançar mão de uma gama de saberes científicos para fazer aquilo a que ela se propõe: sistematizar (ou, como muitos preferem, tematizar) o estudo da Bíblia e do cristianismo. Essa mesma teologia cristã, pra mim, na verdade, é simplesmente o produto de se submeter a Bíblia, o cristianismo e tudo o que lhes são correlatos a critérios definidos pelas chamadas "ciências bíblicas". Mas a teologia tem um componente de fé e de tradição que atrapalha que ela tenha um dos critérios imprescindíveis às ciências: a isenção e a imparcialidade, a neutralidade (pelo menos, pretensão de).
A relação entre teologia e ciências da religião é incontestável, íntima, porém, difícil de definir e nem sempre amigável; às vezes, tensa. Essa discussão foi inaugurada há anos e parece não ter data próxima pra acabar. E o debate é tão extenso que sequer me aventuraria aqui a falar dele. Então, prossigamos.
Bem, visto ser a Bíblia um dos meus referenciais, reporto-me agora ao “Livro dos Inícios” – o “gênesis” bíblico – para corroborar o que virá a seguir. Ali é dito que “Deus criou o ser humano à sua própria imagem e semelhança (o que denota nossa “divindade”); ‘macho’ e ‘fêmea’ os criou” (o que expõe nossa animalidade). Ora, se foi o ser humano feito imagem e semelhança de “Deus”, “Deus” é, inequivocamente, imagem e semelhança do ser humano. Daí, nada mais corriqueiro e natural do que concluir – como Feuerbach – que, na verdade, “o ser humano criou ‘Deus’ à sua própria imagem e semelhança”. A religião, a teologia e, em última instância, "Deus" (ou "Uno", "Absoluto", "Primeiro Motor Imóvel", "Arquiteto do Universo", "Mente Superior"), são consequência de o homem ser dotado de linguagem e de ser um "animal cultural". Tudo é fruto da cultura, a qual é condicionada geográfica e historicamente. E sendo a Bíblia e suas interpretações, ambas, empreendimentos humanos...
Desculpem-me se fui abrupto ou depressa demais aqui, mas, penso que a verdade é mais verdade quando dita de forma “nua e crua”, sem “amaciar”, digamos assim. Prefiro os “tratamentos de choque” aos “discursos paliativos” ou às “doses homeopáticas” que só postergam – pra não dizer anulam qualquer possibilidade de – o conhecimento da verdade. Ora, não é assim: “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”?


segunda-feira, 22 de março de 2010

Pensamentos numa sala de espera (soneto)

(Handall Fabrício Martins)

Tantas noites e dias opressores
já suportei, errante neste mundo...
Agora, sei, nem tudo aqui são flores:
tudo é parte dum aprender fecundo.

Àqueles sentimentos redentores
quis, insistentemente, andar segundo,
mas, alvo de tristezas e outras dores,
‘té hoje permaneço moribundo.

Sem nada entender, ergui minha voz,
transtornado, olhos fitos nos céus,
clamei ao Criador de todos nós.

Deixei-me atingir pelos olhos seus,
entreguei a ele a tristeza atroz,
e aguardo as misericórdias de Deus...


segunda-feira, 15 de março de 2010

AS TRADIÇÕES DO ÊXODO (final)

(continuação)
(Handall Fabrício Martins)

O relato da derrota final dos egípcios (Ex 14 e 15)

Segundo os biblistas, esse texto é como um tecido feito com fios de três cores = três versões do mesmo fato. Seguindo a tradição sacerdotal, que deu a forma final ao relato, o êxodo é identificado com a “fuga” dos escravos hebreus; todavia, a tradição anterior fala de uma “saída”, ou de um dia em que Iahweh “tira” Israel do Egito. O capítulo 14 resulta de uma fusão das narrativas javista e sacerdotal. Não fica claro se os hebreus simplesmente fogem ou se foram autorizados por Faraó a sair. Existe, ainda, menção de uma “espoliação” dos egípcios pelos hebreus fugitivos (cf. Ex 3.21-22; 11.2-3a; 12.35-36; Sl 105.37), que pode ter sido preservada pela tradição eloísta. Esta parece ser a versão mais antiga do êxodo, segundo a qual o êxodo aparenta ter sido uma fuga clandestina de um grupo de escravos que levavam consigo bens e coisas preciosas roubadas dos patrões.
A primeira versão, escrita provavelmente em cerca de 950 a. C., no reinado de Salomão, descreve a travessia do Mar Vermelho como se fosse facilitada por um vento que fez as águas recuarem. É como se a fuga acontecesse na maré baixa (vv. 21a, b; 26-27). A segunda versão, possivelmente oriunda do reino do norte em cerca de 850 a.C., no tempo da opressão do rei Omri, narra que Deus, lá das nuvens, fez com que as rodas dos carros dos egípcios atolassem, facilitando a fuga dos hebreus (vv. 24s). Já a terceira versão, situada pelos estudiosos em mais ou menos 550 a.C., já no exílio babilônico, reflete o desejo dos judeus de novamente vivenciarem uma experiência de libertação como a do Êxodo, levando-os a fazer uma releitura dos acontecimentos ocorridos no Egito. Essa terceira reinterpretação é a mais espetacular de todas, dizendo que as águas do Mar Vermelho se abrem em paredes, como muros, formando um corredor para que os hebreus passassem em seco (vv. 21c-22s; 28ss).
Os redatores finais do livro do Êxodo juntaram essas três versões do mesmo fato, originadas em épocas, lugares e realidades diferentes. Entretanto, todas são leituras de fé dos mesmos fatos do passado, rememorando a libertação por meio do agir maravilhoso de Deus, e que denotam o anseio do povo por um novo Êxodo, uma nova libertação de situações de sofrimento e de opressão. O presente sem perspectivas quer buscar esperança nas experiências do passado distante.
“O grande milagre do êxodo junto às águas é a conquista da liberdade” (BOHN GASS, 2005, p.56).


CONCLUSÃO

“A experiência de Deus no êxodo se tornou o eixo fundamental de toda a Escritura” (BOHN GASS, 2005, p.91). Para Martin Noth, citado por Westermann, (2005, p.48), a narrativa do êxodo é o cerne de tudo o mais que é narrado no Pentateuco. O mesmo se pode dizer do “pequeno credo” (VON RAD, apud WESTERMANN, 2005, p.48), que aparece na introdução ao Decálogo (Ex 20), na oferta das primícias (Dt 26) e na evocação das proezas de Deus em Dt 6.
Com essas afirmações emblemáticas, percebe-se a grandeza e a importância da contribuição do êxodo e de suas tradições para a redação de toda a Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse. Da mesma maneira que os evangelhos devem ser entendidos à luz do evento pascal, os escritores da Bíblia propõem que sempre de novo os leitores interpretem as suas histórias na perspectiva do êxodo. Isso já pode ser percebido, por exemplo, em Gn 12.10-20 (texto que fala de como Sara foi levada para a casa de Faraó e como este foi punido por Deus, ao passo que Abraão foi abençoado e enriqueceu). Para os profetas, o êxodo e o tribalismo também sempre foram o parâmetro para se avaliar (e condenar!) a monarquia, anunciando um modelo alternativo de sociedade. As primeiras comunidades cristãs apresentaram Jesus como um novo Moisés (e, ao mesmo tempo, muito mais importante do que este), dadas as semelhanças entre um e outro: salvação quando bebê num momento em que todas as crianças foram condenadas; jejum de quarenta dias no deserto; tentações no deserto; sacrifício vicário pascal do cordeiro. Também o Apocalipse, em certo sentido, faz uma releitura do êxodo, com a reedição das pragas no intuito de anunciar a libertação da opressão.
Assim, a memória do êxodo é o paradigma não só de toda a Bíblia – povo de Israel e primeiros cristãos –, como deve ser, também, a ótica por meio da qual nós, cristãos atuais, devemos enxergar a sociedade: numa perspectiva escatológica, fruto de quem tem convicção de que Deus irá livrar o seu povo da opressão, mas que, no entanto, não se aliena nem se esconde atrás dessa certeza e viva esperança.
REFERÊNCIAS:


BOHN GASS, Ildo.
Formação do Povo de Israel. Coleção “Uma Introdução à Bíblia”, volume 2. 7 ed. São Paulo: Paulus e São Leopoldo: Cebi, 2005.

BRIEND, J.
Uma leitura do Pentateuco. Coleção “Cadernos Bíblicos”. 5 ed. São Paulo: Paulus, 1985.

CAZELLES, Henri.
História Política de Israel: desde as origens até Alexandre Magno. Série “Biblioteca de Ciências Bíblicas”. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1986.

CERESKO, Anthony R.
Introdução ao Antigo Testamento Numa Perspectiva Libertadora. Coleção “Bíblia e Sociologia”. São Paulo: Paulus, 1996.

GRUEN, Wolfgang.
O tempo que se chama Hoje: uma introdução ao Antigo Testamento. 14 ed. São Paulo: Paulus, 2005.

SCHWANTES, Milton.
Sofrimento e Esperança no Exílio: história e teologia do povo de Deus no século VI a.C. Coleção “Temas Bíblicos”. São Leopoldo: Sinodal e São Paulo: Paulinas, 1987.

WESTERMANN, Claus.
Fundamentos da Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2005.


terça-feira, 9 de março de 2010

AS TRADIÇÕES DO ÊXODO (parte 2)

(continuação)
(Handall Fabrício Martins)

O povo de Israel foi formado da junção de vários grupos que tinham em comum o anseio por libertação da opressão dos grandes impérios e cidades-estado da época. Esses grupos incluem camponeses de Canaã, empobrecidos, endividados e escravizados, e que contribuíram com a designação de Deus como El e seus derivados, como Elohim e Eloah, mas cujo entendimento, porém, mudou em relação à concepção estritamente cananéia.
Outro grupo de importância relevante foi o dos pastores seminômades das estepes de Canaã. Estes foram os primeiros a resistir à opressão das cidades-estado, no decorrer do segundo milênio a.C. Sua resistência se deu em forma de fuga para as estepes. Originalmente, esses pastores podem ter sido camponeses que, para fugir da opressão, fizeram seu êxodo, ou arameus que transmigraram (migraram de longe). Na verdade, o modo de vida por eles adotado fazia com que eles se subordinassem às condições climáticas e geográficas, além, é claro, de torná-los sempre fugitivos dos poderes opressores da época. Assim, foram várias as experiências de êxodo vividas por esses grupos.
Mas talvez o principal contingente, por menos numeroso que tenha sido, seja o grupo liderado por Moisés/Josué, os hebreus (ou “hapirus”, um misto de povo – cf. Ex 12.38) que estavam fugindo da escravidão e da opressão do Egito. Ora, foi esse grupo que contribuiu com o elemento que faltava para unir todos esses grupos marginalizados: sua experiência histórica de libertação do poder mais forte da época – o egípcio –, com a força da fé no Deus libertador. Segundo Gruen, provavelmente estavam à frente deste grupo os clãs que, mais tarde, formariam as tribos de Efraim e Manassés (a “casa de José”). Faziam parte deste grupo, ainda, os clãs de Benjamin. Seriam essas três tribos (os “filhos de Raquel”, a “esposa que Jacó amava”) que, posteriormente, assumiriam a liderança de todo o Israel (as tribos dos “filhos de Lia” teriam já se instalado em Canaã, ao passo que os “filhos das escravas” poderiam ter sido estrangeiros que depois foram acolhidos como irmãos).
É importante citarmos, ainda, um quarto grupo: o dos pastores seminômades vindos do Sinai, em Madiã, o qual teve grande participação na formação de Israel, em Canaã. Esse grupo veio da região de Madiã (ou Midiã) – eram midianitas, portanto –, oriundos dos arredores do Sinai, a leste do Golfo de Ácaba e ao sul do Mar Morto (talvez expulsos pelos edomitas – cf. Gn 36.35 – o que os forçou a migrar para a região de Canaã). Este Sinai é o histórico, e não o da tradição. Na Bíblia, o Sinai foi chamado também de Horeb ou Monte de Deus (Ex 3.1; 1Rs 19.8). É possível que os diferentes nomes dos montes apontem para três diferentes experiências de Deus, mas que foram sintetizadas pelas diversas tradições de fé, tratando-se, nos atuais textos bíblicos, da mesma localidade. Mas as principais contribuições deste grupo foram o “nome” e a “unicidade” de Deus. A tradição conta que Moisés passou quarenta anos em Midiã, e isso, provavelmente (segundo muitos estudiosos), para conhecer a Deus pelo nome Iahweh. O certo é que (ainda segundo muitos teólogos) os grupos pastoris das estepes de Canaã só foram conhecer a Deus pelo nome Iahweh depois que os pastores do Sinai se integraram à experiência tribal. Entre os midianitas, Iahweh estava ligado a fenômenos climáticos, como chuva e trovões, e a eventos vulcânicos, como terremotos, fumaça e fogo (ver Ex 19.16-19 e Jz 5.4,5). Arqueólogos descobriram que, em tempos não muito distantes da pré-história de Israel, havia vulcões ativos em Midiã, hoje extintos. Assim, o culto a Iahweh seria originário de Midiã e anterior à formação de Israel, sendo Jetro, sogro de Moisés, seu sacerdote (cf. Ex 3.1; 18.1-12). Também Iahweh deixou de ser entendido como um Deus vinculado à montanha – no caso, o Sinai – para se tornar um Deus dinâmico e que caminha, faz história com seu povo. Finalmente, a “unicidade” de Deus – talvez a maior contribuição teológica de Israel – pode ser entendida como que para promover a igualdade nas relações sociais, diversamente das sociedades politeístas da época, as quais eram extremamente estratificadas.
Outros grupos também participaram na formação das tribos, contribuindo com suas experiências: os edomitas (cf. Gn 36); a tribo de Dã, que possivelmente tenha se originado entre os Povos do Mar, como os filisteus; os gibeonitas (cf. Js 9-10); a tribo de Issacar, cujo nome significa “homem assalariado” – sua origem talvez esteja entre os trabalhadores das cidades-estado da planície de Jezreel ou Esdrelon (cf. Gn 49.14,15 e Js 19.17-23); empobrecidos das cidades, como o clã da prostituta Raabe (cf. Js 2; 6.22-25) e outro da região de Betel (cf. Jz 1.22-26); os quenitas, ou queneus (cf. Jz 1.16).
Outra observação importante a ser feita é que os textos bíblicos mais antigos não conhecem a ligação entre as tradições do Sinai e a do êxodo. Tanto os credos mais antigos (Dt 6.21-23 e 26.5-9) quanto o importante cabeçalho das duas versões do Decálogo (Ex 20.2; Dt 5.6) fazem referência apenas ao êxodo, desconsiderando a importância do Sinai. Por outro lado, em Jz 5, outro texto muito antigo, celebra-se a libertação promovida por Iahweh reportando-se apenas ao Deus do Sinai. Isso pode apontar na direção de que quando o texto de Juízes foi escrito não se tinha ainda conhecimento dos eventos do êxodo, sobretudo porque em ambos os eventos fala-se da vitória de Iahweh por meio das águas.
Na tradição teológica posterior, o êxodo dos hebreus acabou incorporando os êxodos dos demais grupos, antecipando o que só aconteceria mais tarde, qual seja o encontro de todos esses grupos em Canaã, sendo essa a tradição que consta em nossas Bíblias. Ora, como foi dito, todos os grupos que contribuíram para a formação de Israel tiveram suas experiências de êxodo (ou êxodos): buscavam a fuga da opressão para um espaço de liberdade. Como o êxodo dos hebreus foi o mais espetacular – narrando a libertação maravilhosa empreendida exclusivamente pelo poder de Deus –, ele tornou-se o paradigma do Êxodo. Foi esse êxodo que fundou o povo de Israel. Mais: segundo os estudiosos, as principais e mais antigas sínteses de fé de Israel – os chamados credos históricos (como os de Dt 6.20-26 e 26.5-10) –, têm sua origem na memória do Êxodo e na certeza do agir de Deus nesse processo histórico de libertação.
Quanto ao número dos que fugiram do Egito – Ex 12.37 fala em 600 mil! (sem contar mulheres e crianças!) –, isso deve ser interpretado não no sentido de que foi uma multidão que fugiu, mas como o quanto foi significativa a presença de Deus na libertação, a ação de Deus em favor do seu povo. É um dado celebrativo, épico. Na verdade, o grupo que saiu do Egito foi pequeno, composto de marginalizados: eram os “pequenos” da sociedade e, como disse Jesus, é aos pequeninos que Deus revela as coisas grandes. Por outro lado, 600 mil é aproximadamente a população do reino unido de Israel na época de Salomão, época em que, segundo muitos, o texto foi escrito, e que, portanto, mostra a intenção de incluir todo o Israel na experiência de libertação ocorrida no Êxodo. Quanto ao itinerário do êxodo e a duração da peregrinação no deserto também não há consenso entre os estudiosos.
Segundo Cazelles (CAZELLES, 1986, p.88), não podemos esquecer que “a fórmula bíblica mais antiga não é ‘sair do Egito’, mas ‘subir do país do Egito’”, expressão mantida, por exemplo, pelo profeta Oséias (12.13). Além disso, para Cazelles (CAZELLES, 1986), a pluralidade de êxodos (do Egito) é insustentável: o “êxodo-fuga”, usando a terminologia de R. de Vaux, citado por Cazelles (1986, p.92) foi o êxodo de um pequeno grupo de descendentes de José sob a direção de Moisés; já o “êxodo-expulsão” refere-se à lembrança da expulsão dos hicsos e que foi registrada pela tradição e transmitida por tribos semitas como a de Simeão, as quais foram subjugadas pelos egípcios em Canaã, do séc. XVI ao XII.

(continua)


quarta-feira, 3 de março de 2010

AS TRADIÇÕES DO ÊXODO

INTRODUÇÃO
(Handall Fabrício Martins)


A Bíblia, “palavra de Deus” ao homem, em vez de ser um “catecismo”, uma “constituição” ou um “código civil e religioso”, é, antes de tudo, uma história: a história da fé do povo de Israel em seu Deus, Javé, e da autocompreensão que esse mesmo povo tinha diante desse Deus. Especialmente o Pentateuco, a que os judeus chamavam de “Lei”, apesar da designação, não é tão-somente um corpo jurídico ou moral; antes, é um conjunto de narrativas que denotam as experiências de fé dos israelitas ao longo de sua caminhada como povo de Deus. É nesse sentido que Deus, ao revelar o seu nome a Moisés, disse: “Eu sou aquele que serei” (TEB), ou seja: pela tua história, pelo que serei contigo e com o povo, descobrirás quem eu sou. E isso é apaixonante, pois cada etapa dessa história diz respeito também a nós, povo de Deus, igreja de Cristo.
O livro do Êxodo, igualmente, fala de um Deus que se revela na história, narrando a experiência libertadora e salvífica de Javé para com o seu povo escolhido quando este era escravo no Egito, ao mesmo tempo em que insere essa história no contexto dos outros povos da época.
A redação final do livro do Êxodo, bem como de todo o Pentateuco, foi dada num momento posterior ao do acontecimento dos fatos ali narrados; aliás, os primeiros escritos relatando esses fatos são bem tardios se comparados aos acontecimentos narrados (conforme consenso da maioria dos teólogos contemporâneos). O fato é que esse passado era conhecido das tradições orais das tribos, e o registro escrito dessa história se deu num momento em que o povo começou a interpretar o seu presente à luz do seu passado. Quanto à época exata dessa redação final, há bastante divergência entre os estudiosos, inclusive, porque, quanto às tradições, elas só deixaram vestígios nos textos cuja redação foi finalizada posteriormente.
As tradições a que nos referimos têm sua origem na chamada hipótese documentária da Bíblia, ou teoria das quatro fontes (que atualmente não é unânime), que nos apresentam quatro documentos de épocas diferentes, e que narram, muitas vezes, os mesmos episódios, porém, sob óticas distintas, em parte, pelos diversos momentos históricos e, em parte, pela ideologia do grupo responsável pela transmissão de tal tradição. As mais antigas são a javista e a eloísta: a primeira, originária do reino de Judá e partidária da corte de Jerusalém, não dá a Moisés a mesma importância que a última, entretanto, enfatiza que a atitude de Israel com relação ao Egito deve ser de bênção; a segunda (considerada inexistente, na opinião de alguns estudiosos), paralela à primeira, oriunda do norte e fruto dos anseios proféticos – especialmente de Elias, Eliseu e Oséias –, deixa implícito que há temor de Deus em pessoas estranhas à fé javista (por exemplo, as parteiras que poupavam os meninos hebreus e a adoção, por parte da filha do faraó, de um desses meninos, Moisés). Há, ainda, o documento relativo ao Deuteronômio – deuteronomista –, também nascido no norte (e que muito se aproxima do eloísta, sob certos aspectos), o qual exerce um papel pedagógico importante para o povo de Israel: por meio do recurso da recordação, da rememoração dos fatos passados e da Lei, insta o povo a perseverar na fé, o que inclui, também, uma ênfase nas festas que foram instituídas.
Muitos estudiosos afirmam ainda que, posteriormente, houve uma fusão das tradições javista e eloísta (séculos VII e VIII), e que, num período ainda mais tardio, surgiu a tradição sacerdotal (século VI, durante o exílio babilônico, fruto dos círculos sacerdotais saídos de Jerusalém e profundamente marcados pelo exílio). A principal contribuição dessa tradição teria sido dar uma nova interpretação às tradições antigas, com o intuito de esclarecer a situação presente de opressão. Segundo esses estudiosos, a tradição sacerdotal fundiu as tradições javista e eloísta por volta do século IV, fazendo novos acréscimos e inserindo ideologias (sobretudo no que tange à ênfase dada à importância do tabernáculo, do templo e do sacerdócio). O responsável por tal atividade literária teria sido Esdras, incumbido pelo rei persa Artaxerxes II de dar um estatuto comum tanto aos judeus que haviam ficado na Palestina quanto aos que estavam retornando do exílio.
Entretanto, há estudiosos – como Milton Schwantes – que colocam em dúvida a teoria das quatro fontes, sob a alegação de que, sendo ela admitida, levantam-se muito mais questões do que aquelas que, baseadas na teoria, foram respondidas. Porém, Schwantes admite que houve mais de uma releitura do Pentateuco, o que inclui não só o livro do Êxodo, mas a experiência de libertação narrada nele. Em especial, segundo ele, a nova interpretação elaborada sob a perspectiva sacerdotal – em tempos do exílio babilônico ou da dominação persa – é plausível devido à situação de espoliação, opressão e cargas vivida pelos judeus entre os séculos IV e VI a.C.

(continua)