"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

segunda-feira, 15 de março de 2010

AS TRADIÇÕES DO ÊXODO (final)

(continuação)
(Handall Fabrício Martins)

O relato da derrota final dos egípcios (Ex 14 e 15)

Segundo os biblistas, esse texto é como um tecido feito com fios de três cores = três versões do mesmo fato. Seguindo a tradição sacerdotal, que deu a forma final ao relato, o êxodo é identificado com a “fuga” dos escravos hebreus; todavia, a tradição anterior fala de uma “saída”, ou de um dia em que Iahweh “tira” Israel do Egito. O capítulo 14 resulta de uma fusão das narrativas javista e sacerdotal. Não fica claro se os hebreus simplesmente fogem ou se foram autorizados por Faraó a sair. Existe, ainda, menção de uma “espoliação” dos egípcios pelos hebreus fugitivos (cf. Ex 3.21-22; 11.2-3a; 12.35-36; Sl 105.37), que pode ter sido preservada pela tradição eloísta. Esta parece ser a versão mais antiga do êxodo, segundo a qual o êxodo aparenta ter sido uma fuga clandestina de um grupo de escravos que levavam consigo bens e coisas preciosas roubadas dos patrões.
A primeira versão, escrita provavelmente em cerca de 950 a. C., no reinado de Salomão, descreve a travessia do Mar Vermelho como se fosse facilitada por um vento que fez as águas recuarem. É como se a fuga acontecesse na maré baixa (vv. 21a, b; 26-27). A segunda versão, possivelmente oriunda do reino do norte em cerca de 850 a.C., no tempo da opressão do rei Omri, narra que Deus, lá das nuvens, fez com que as rodas dos carros dos egípcios atolassem, facilitando a fuga dos hebreus (vv. 24s). Já a terceira versão, situada pelos estudiosos em mais ou menos 550 a.C., já no exílio babilônico, reflete o desejo dos judeus de novamente vivenciarem uma experiência de libertação como a do Êxodo, levando-os a fazer uma releitura dos acontecimentos ocorridos no Egito. Essa terceira reinterpretação é a mais espetacular de todas, dizendo que as águas do Mar Vermelho se abrem em paredes, como muros, formando um corredor para que os hebreus passassem em seco (vv. 21c-22s; 28ss).
Os redatores finais do livro do Êxodo juntaram essas três versões do mesmo fato, originadas em épocas, lugares e realidades diferentes. Entretanto, todas são leituras de fé dos mesmos fatos do passado, rememorando a libertação por meio do agir maravilhoso de Deus, e que denotam o anseio do povo por um novo Êxodo, uma nova libertação de situações de sofrimento e de opressão. O presente sem perspectivas quer buscar esperança nas experiências do passado distante.
“O grande milagre do êxodo junto às águas é a conquista da liberdade” (BOHN GASS, 2005, p.56).


CONCLUSÃO

“A experiência de Deus no êxodo se tornou o eixo fundamental de toda a Escritura” (BOHN GASS, 2005, p.91). Para Martin Noth, citado por Westermann, (2005, p.48), a narrativa do êxodo é o cerne de tudo o mais que é narrado no Pentateuco. O mesmo se pode dizer do “pequeno credo” (VON RAD, apud WESTERMANN, 2005, p.48), que aparece na introdução ao Decálogo (Ex 20), na oferta das primícias (Dt 26) e na evocação das proezas de Deus em Dt 6.
Com essas afirmações emblemáticas, percebe-se a grandeza e a importância da contribuição do êxodo e de suas tradições para a redação de toda a Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse. Da mesma maneira que os evangelhos devem ser entendidos à luz do evento pascal, os escritores da Bíblia propõem que sempre de novo os leitores interpretem as suas histórias na perspectiva do êxodo. Isso já pode ser percebido, por exemplo, em Gn 12.10-20 (texto que fala de como Sara foi levada para a casa de Faraó e como este foi punido por Deus, ao passo que Abraão foi abençoado e enriqueceu). Para os profetas, o êxodo e o tribalismo também sempre foram o parâmetro para se avaliar (e condenar!) a monarquia, anunciando um modelo alternativo de sociedade. As primeiras comunidades cristãs apresentaram Jesus como um novo Moisés (e, ao mesmo tempo, muito mais importante do que este), dadas as semelhanças entre um e outro: salvação quando bebê num momento em que todas as crianças foram condenadas; jejum de quarenta dias no deserto; tentações no deserto; sacrifício vicário pascal do cordeiro. Também o Apocalipse, em certo sentido, faz uma releitura do êxodo, com a reedição das pragas no intuito de anunciar a libertação da opressão.
Assim, a memória do êxodo é o paradigma não só de toda a Bíblia – povo de Israel e primeiros cristãos –, como deve ser, também, a ótica por meio da qual nós, cristãos atuais, devemos enxergar a sociedade: numa perspectiva escatológica, fruto de quem tem convicção de que Deus irá livrar o seu povo da opressão, mas que, no entanto, não se aliena nem se esconde atrás dessa certeza e viva esperança.
REFERÊNCIAS:


BOHN GASS, Ildo.
Formação do Povo de Israel. Coleção “Uma Introdução à Bíblia”, volume 2. 7 ed. São Paulo: Paulus e São Leopoldo: Cebi, 2005.

BRIEND, J.
Uma leitura do Pentateuco. Coleção “Cadernos Bíblicos”. 5 ed. São Paulo: Paulus, 1985.

CAZELLES, Henri.
História Política de Israel: desde as origens até Alexandre Magno. Série “Biblioteca de Ciências Bíblicas”. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1986.

CERESKO, Anthony R.
Introdução ao Antigo Testamento Numa Perspectiva Libertadora. Coleção “Bíblia e Sociologia”. São Paulo: Paulus, 1996.

GRUEN, Wolfgang.
O tempo que se chama Hoje: uma introdução ao Antigo Testamento. 14 ed. São Paulo: Paulus, 2005.

SCHWANTES, Milton.
Sofrimento e Esperança no Exílio: história e teologia do povo de Deus no século VI a.C. Coleção “Temas Bíblicos”. São Leopoldo: Sinodal e São Paulo: Paulinas, 1987.

WESTERMANN, Claus.
Fundamentos da Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2005.


Um comentário:

  1. achei fantástica a idéia de liberdade da opressão. Parece que hoje precisamos de um novo exodo.
    Wanderley

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