"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

terça-feira, 9 de março de 2010

AS TRADIÇÕES DO ÊXODO (parte 2)

(continuação)
(Handall Fabrício Martins)

O povo de Israel foi formado da junção de vários grupos que tinham em comum o anseio por libertação da opressão dos grandes impérios e cidades-estado da época. Esses grupos incluem camponeses de Canaã, empobrecidos, endividados e escravizados, e que contribuíram com a designação de Deus como El e seus derivados, como Elohim e Eloah, mas cujo entendimento, porém, mudou em relação à concepção estritamente cananéia.
Outro grupo de importância relevante foi o dos pastores seminômades das estepes de Canaã. Estes foram os primeiros a resistir à opressão das cidades-estado, no decorrer do segundo milênio a.C. Sua resistência se deu em forma de fuga para as estepes. Originalmente, esses pastores podem ter sido camponeses que, para fugir da opressão, fizeram seu êxodo, ou arameus que transmigraram (migraram de longe). Na verdade, o modo de vida por eles adotado fazia com que eles se subordinassem às condições climáticas e geográficas, além, é claro, de torná-los sempre fugitivos dos poderes opressores da época. Assim, foram várias as experiências de êxodo vividas por esses grupos.
Mas talvez o principal contingente, por menos numeroso que tenha sido, seja o grupo liderado por Moisés/Josué, os hebreus (ou “hapirus”, um misto de povo – cf. Ex 12.38) que estavam fugindo da escravidão e da opressão do Egito. Ora, foi esse grupo que contribuiu com o elemento que faltava para unir todos esses grupos marginalizados: sua experiência histórica de libertação do poder mais forte da época – o egípcio –, com a força da fé no Deus libertador. Segundo Gruen, provavelmente estavam à frente deste grupo os clãs que, mais tarde, formariam as tribos de Efraim e Manassés (a “casa de José”). Faziam parte deste grupo, ainda, os clãs de Benjamin. Seriam essas três tribos (os “filhos de Raquel”, a “esposa que Jacó amava”) que, posteriormente, assumiriam a liderança de todo o Israel (as tribos dos “filhos de Lia” teriam já se instalado em Canaã, ao passo que os “filhos das escravas” poderiam ter sido estrangeiros que depois foram acolhidos como irmãos).
É importante citarmos, ainda, um quarto grupo: o dos pastores seminômades vindos do Sinai, em Madiã, o qual teve grande participação na formação de Israel, em Canaã. Esse grupo veio da região de Madiã (ou Midiã) – eram midianitas, portanto –, oriundos dos arredores do Sinai, a leste do Golfo de Ácaba e ao sul do Mar Morto (talvez expulsos pelos edomitas – cf. Gn 36.35 – o que os forçou a migrar para a região de Canaã). Este Sinai é o histórico, e não o da tradição. Na Bíblia, o Sinai foi chamado também de Horeb ou Monte de Deus (Ex 3.1; 1Rs 19.8). É possível que os diferentes nomes dos montes apontem para três diferentes experiências de Deus, mas que foram sintetizadas pelas diversas tradições de fé, tratando-se, nos atuais textos bíblicos, da mesma localidade. Mas as principais contribuições deste grupo foram o “nome” e a “unicidade” de Deus. A tradição conta que Moisés passou quarenta anos em Midiã, e isso, provavelmente (segundo muitos estudiosos), para conhecer a Deus pelo nome Iahweh. O certo é que (ainda segundo muitos teólogos) os grupos pastoris das estepes de Canaã só foram conhecer a Deus pelo nome Iahweh depois que os pastores do Sinai se integraram à experiência tribal. Entre os midianitas, Iahweh estava ligado a fenômenos climáticos, como chuva e trovões, e a eventos vulcânicos, como terremotos, fumaça e fogo (ver Ex 19.16-19 e Jz 5.4,5). Arqueólogos descobriram que, em tempos não muito distantes da pré-história de Israel, havia vulcões ativos em Midiã, hoje extintos. Assim, o culto a Iahweh seria originário de Midiã e anterior à formação de Israel, sendo Jetro, sogro de Moisés, seu sacerdote (cf. Ex 3.1; 18.1-12). Também Iahweh deixou de ser entendido como um Deus vinculado à montanha – no caso, o Sinai – para se tornar um Deus dinâmico e que caminha, faz história com seu povo. Finalmente, a “unicidade” de Deus – talvez a maior contribuição teológica de Israel – pode ser entendida como que para promover a igualdade nas relações sociais, diversamente das sociedades politeístas da época, as quais eram extremamente estratificadas.
Outros grupos também participaram na formação das tribos, contribuindo com suas experiências: os edomitas (cf. Gn 36); a tribo de Dã, que possivelmente tenha se originado entre os Povos do Mar, como os filisteus; os gibeonitas (cf. Js 9-10); a tribo de Issacar, cujo nome significa “homem assalariado” – sua origem talvez esteja entre os trabalhadores das cidades-estado da planície de Jezreel ou Esdrelon (cf. Gn 49.14,15 e Js 19.17-23); empobrecidos das cidades, como o clã da prostituta Raabe (cf. Js 2; 6.22-25) e outro da região de Betel (cf. Jz 1.22-26); os quenitas, ou queneus (cf. Jz 1.16).
Outra observação importante a ser feita é que os textos bíblicos mais antigos não conhecem a ligação entre as tradições do Sinai e a do êxodo. Tanto os credos mais antigos (Dt 6.21-23 e 26.5-9) quanto o importante cabeçalho das duas versões do Decálogo (Ex 20.2; Dt 5.6) fazem referência apenas ao êxodo, desconsiderando a importância do Sinai. Por outro lado, em Jz 5, outro texto muito antigo, celebra-se a libertação promovida por Iahweh reportando-se apenas ao Deus do Sinai. Isso pode apontar na direção de que quando o texto de Juízes foi escrito não se tinha ainda conhecimento dos eventos do êxodo, sobretudo porque em ambos os eventos fala-se da vitória de Iahweh por meio das águas.
Na tradição teológica posterior, o êxodo dos hebreus acabou incorporando os êxodos dos demais grupos, antecipando o que só aconteceria mais tarde, qual seja o encontro de todos esses grupos em Canaã, sendo essa a tradição que consta em nossas Bíblias. Ora, como foi dito, todos os grupos que contribuíram para a formação de Israel tiveram suas experiências de êxodo (ou êxodos): buscavam a fuga da opressão para um espaço de liberdade. Como o êxodo dos hebreus foi o mais espetacular – narrando a libertação maravilhosa empreendida exclusivamente pelo poder de Deus –, ele tornou-se o paradigma do Êxodo. Foi esse êxodo que fundou o povo de Israel. Mais: segundo os estudiosos, as principais e mais antigas sínteses de fé de Israel – os chamados credos históricos (como os de Dt 6.20-26 e 26.5-10) –, têm sua origem na memória do Êxodo e na certeza do agir de Deus nesse processo histórico de libertação.
Quanto ao número dos que fugiram do Egito – Ex 12.37 fala em 600 mil! (sem contar mulheres e crianças!) –, isso deve ser interpretado não no sentido de que foi uma multidão que fugiu, mas como o quanto foi significativa a presença de Deus na libertação, a ação de Deus em favor do seu povo. É um dado celebrativo, épico. Na verdade, o grupo que saiu do Egito foi pequeno, composto de marginalizados: eram os “pequenos” da sociedade e, como disse Jesus, é aos pequeninos que Deus revela as coisas grandes. Por outro lado, 600 mil é aproximadamente a população do reino unido de Israel na época de Salomão, época em que, segundo muitos, o texto foi escrito, e que, portanto, mostra a intenção de incluir todo o Israel na experiência de libertação ocorrida no Êxodo. Quanto ao itinerário do êxodo e a duração da peregrinação no deserto também não há consenso entre os estudiosos.
Segundo Cazelles (CAZELLES, 1986, p.88), não podemos esquecer que “a fórmula bíblica mais antiga não é ‘sair do Egito’, mas ‘subir do país do Egito’”, expressão mantida, por exemplo, pelo profeta Oséias (12.13). Além disso, para Cazelles (CAZELLES, 1986), a pluralidade de êxodos (do Egito) é insustentável: o “êxodo-fuga”, usando a terminologia de R. de Vaux, citado por Cazelles (1986, p.92) foi o êxodo de um pequeno grupo de descendentes de José sob a direção de Moisés; já o “êxodo-expulsão” refere-se à lembrança da expulsão dos hicsos e que foi registrada pela tradição e transmitida por tribos semitas como a de Simeão, as quais foram subjugadas pelos egípcios em Canaã, do séc. XVI ao XII.

(continua)


Um comentário:

  1. fundamental a distinção entre o nunero literal e o 'épico' de hebreus que deixaram o Egito. 600 mil é um número inclusivo, assim como os 144 mil de Apocalípse. esse é o caráter primeiro da experiência religiosa: Nos fazer ver e ouvir a grandeza e o alcance da revelação de Deus sem querer fazê-lo refém da compreensão de quem quer que seja.

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