"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

quarta-feira, 3 de março de 2010

AS TRADIÇÕES DO ÊXODO

INTRODUÇÃO
(Handall Fabrício Martins)


A Bíblia, “palavra de Deus” ao homem, em vez de ser um “catecismo”, uma “constituição” ou um “código civil e religioso”, é, antes de tudo, uma história: a história da fé do povo de Israel em seu Deus, Javé, e da autocompreensão que esse mesmo povo tinha diante desse Deus. Especialmente o Pentateuco, a que os judeus chamavam de “Lei”, apesar da designação, não é tão-somente um corpo jurídico ou moral; antes, é um conjunto de narrativas que denotam as experiências de fé dos israelitas ao longo de sua caminhada como povo de Deus. É nesse sentido que Deus, ao revelar o seu nome a Moisés, disse: “Eu sou aquele que serei” (TEB), ou seja: pela tua história, pelo que serei contigo e com o povo, descobrirás quem eu sou. E isso é apaixonante, pois cada etapa dessa história diz respeito também a nós, povo de Deus, igreja de Cristo.
O livro do Êxodo, igualmente, fala de um Deus que se revela na história, narrando a experiência libertadora e salvífica de Javé para com o seu povo escolhido quando este era escravo no Egito, ao mesmo tempo em que insere essa história no contexto dos outros povos da época.
A redação final do livro do Êxodo, bem como de todo o Pentateuco, foi dada num momento posterior ao do acontecimento dos fatos ali narrados; aliás, os primeiros escritos relatando esses fatos são bem tardios se comparados aos acontecimentos narrados (conforme consenso da maioria dos teólogos contemporâneos). O fato é que esse passado era conhecido das tradições orais das tribos, e o registro escrito dessa história se deu num momento em que o povo começou a interpretar o seu presente à luz do seu passado. Quanto à época exata dessa redação final, há bastante divergência entre os estudiosos, inclusive, porque, quanto às tradições, elas só deixaram vestígios nos textos cuja redação foi finalizada posteriormente.
As tradições a que nos referimos têm sua origem na chamada hipótese documentária da Bíblia, ou teoria das quatro fontes (que atualmente não é unânime), que nos apresentam quatro documentos de épocas diferentes, e que narram, muitas vezes, os mesmos episódios, porém, sob óticas distintas, em parte, pelos diversos momentos históricos e, em parte, pela ideologia do grupo responsável pela transmissão de tal tradição. As mais antigas são a javista e a eloísta: a primeira, originária do reino de Judá e partidária da corte de Jerusalém, não dá a Moisés a mesma importância que a última, entretanto, enfatiza que a atitude de Israel com relação ao Egito deve ser de bênção; a segunda (considerada inexistente, na opinião de alguns estudiosos), paralela à primeira, oriunda do norte e fruto dos anseios proféticos – especialmente de Elias, Eliseu e Oséias –, deixa implícito que há temor de Deus em pessoas estranhas à fé javista (por exemplo, as parteiras que poupavam os meninos hebreus e a adoção, por parte da filha do faraó, de um desses meninos, Moisés). Há, ainda, o documento relativo ao Deuteronômio – deuteronomista –, também nascido no norte (e que muito se aproxima do eloísta, sob certos aspectos), o qual exerce um papel pedagógico importante para o povo de Israel: por meio do recurso da recordação, da rememoração dos fatos passados e da Lei, insta o povo a perseverar na fé, o que inclui, também, uma ênfase nas festas que foram instituídas.
Muitos estudiosos afirmam ainda que, posteriormente, houve uma fusão das tradições javista e eloísta (séculos VII e VIII), e que, num período ainda mais tardio, surgiu a tradição sacerdotal (século VI, durante o exílio babilônico, fruto dos círculos sacerdotais saídos de Jerusalém e profundamente marcados pelo exílio). A principal contribuição dessa tradição teria sido dar uma nova interpretação às tradições antigas, com o intuito de esclarecer a situação presente de opressão. Segundo esses estudiosos, a tradição sacerdotal fundiu as tradições javista e eloísta por volta do século IV, fazendo novos acréscimos e inserindo ideologias (sobretudo no que tange à ênfase dada à importância do tabernáculo, do templo e do sacerdócio). O responsável por tal atividade literária teria sido Esdras, incumbido pelo rei persa Artaxerxes II de dar um estatuto comum tanto aos judeus que haviam ficado na Palestina quanto aos que estavam retornando do exílio.
Entretanto, há estudiosos – como Milton Schwantes – que colocam em dúvida a teoria das quatro fontes, sob a alegação de que, sendo ela admitida, levantam-se muito mais questões do que aquelas que, baseadas na teoria, foram respondidas. Porém, Schwantes admite que houve mais de uma releitura do Pentateuco, o que inclui não só o livro do Êxodo, mas a experiência de libertação narrada nele. Em especial, segundo ele, a nova interpretação elaborada sob a perspectiva sacerdotal – em tempos do exílio babilônico ou da dominação persa – é plausível devido à situação de espoliação, opressão e cargas vivida pelos judeus entre os séculos IV e VI a.C.

(continua)


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