"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

domingo, 25 de abril de 2010

A profecia na atualidade II: entre a conciliação e a condenação

Handall Fabrício Martins


Na medida em que alguns profetas vétero-testamentários entendiam que Deus podia usar mesmo um império para impor Sua vontade a outro(s) império(s), admitia-se até a submissão dos judeus a uma outra nação. Ora, isso é perfeitamente compreensível se considerarmos a visão que os profetas tinham da história: a palavra de Deus – que expressa a Sua vontade – cria, interpreta e interpela a história.
Para os profetas, era Deus quem guiava toda a história. Então, se um povo chegava a exercer domínio sobre outro(s), era porque Deus tinha conduzido os acontecimentos assim, fazendo-os convergir naquele momento. Isso era admitido por alguns profetas, mas com esta ressalva: somente sob a condição de ser usado para fazer cumprir a vontade de Deus é que um império podia subsistir e exercer dominação. Claro que essa era uma maneira de o profeta tentar entender como e por que o povo escolhido de Deus podia sofrer tanto como sofreu sob o jugo de sucessivos impérios, ao mesmo tempo em que chamava o povo à conversão, à decisão pelo arrependimento, pelo retorno ao Deus da aliança.
Sob uma perspectiva diversa, porém, havia profetas que não admitiam, em hipótese alguma, a existência de impérios, a dominação de um povo sobre outro. O elemento nacionalista às vezes estava presente, mas era a suposta incompatibilidade entre a sujeição impingida por outro povo – de regra, de forma cruel – que o profeta não podia conceber. Fosse sobre os judeus, fosse sobre um outro povo, o profeta condenava a sujeição de uma nação pela outra. Era como se o profeta bradasse: “Isso não pode ser vontade de Deus! Como Deus pode consentir que um povo inflija sobre outro tanto sofrimento e aflição, com tanta crueldade, impiedade e transgressão? E, também, sobre o povo escolhido de Deus, sobre o meu povo?! Não!”
O que isso tem a nos dizer hoje, a respeito da idolatria do mercado total, entidade esta a que se atribui vida própria, auto-regulação e auto-equilíbrio, além de ascendência sobre todas as esferas da vida? Podemos nos conformar com a substituição de Deus por um ídolo produzido pelo amor ao dinheiro, raiz de toda espécie de males? O capitalismo, o mercado total e global e o consumismo são o jeito normal de viver? E isso à custa do sacrifício de tantas vidas humanas, espoliadas que são do pouco que têm, pois, a riqueza de uns tem sido construída ao preço da opressão, dominação, exclusão, marginalização, empobrecimento e extermínio de muitos? Onde estão os profetas de nossa geração?
Urge que restabeleçamos a aliança entre nós e Deus, mas isso só poderá ser levado a bom termo quando restaurarmos a aliança entre nós, a família humana composta de muitos filhos do mesmo Pai, promovendo a paz uns com os outros, sob o pressuposto da tolerância mútua, inclusive a religiosa, e nos reconciliarmos com a criação de Deus, a fim de assegurarmos, também, nossa sobrevivência em nossa casa comum, a Mãe Terra.
Atentemos para as orientações do Mestre (Marcos 10.42-45): “Jesus os chamou e disse: ‘Vocês sabem que aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Ao contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo; e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo de todos. Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.’”
Oxalá Deus nos ajude!


terça-feira, 20 de abril de 2010

A profecia na atualidade

Handall Fabrício Martins

Paul Tillich foi muito feliz ao formular o “princípio protestante”. O acento principal do “princípio” é seu caráter profético. Ou seja, a Igreja, seus mestres, suas instituições e autoridades, suas confissões e expressões de fé encontram-se sob o juízo profético. Tudo na Igreja deve estar sob o signo da cruz, pois ela representa o juízo divino que a si mesmo tudo submete. Ora, ao que me parece, o “princípio protestante” de Tillich pode ser vinculado diretamente a um princípio da Reforma Protestante: “Ecclesia reformata et semper reformanda est” (“A igreja reformada está sempre se reformando”). Assim, creio que, da mesma forma que os profetas bíblicos se preocuparam não somente com o culto israelita, mas, também, com outras instituições, como o Estado e a sociedade em geral, é possível estender o alcance do “princípio protestante” tillichiano a toda a realidade social.
Percebo que um problema que tem afetado de forma significativa o tema em tela é a confusão que se estabeleceu entre “profecia” ou “palavra profética” e “vidência” ou “previsão do futuro”. Muitos dos cristãos protestantes entendem profecia bíblica como algo que se refere única e exclusivamente ao porvir. Ao lerem os textos proféticos, ficam procurando descobrir o que “já se cumpriu” e o que “ainda não se cumpriu” na história de Israel e na universal, tendo por base os textos dos profetas.
Quanto à profecia ou palavra profética hoje, não são poucos os que entendem que existam “profetas” (pessoas que têm o “dom da profecia”), especializadas em proferir oráculos de alcance, quase que invariavelmente, individuais. Chega-se a dizer: “vou à ‘casa do profeta’, ouvir ‘o que Deus tem a dizer’”. Ou se transforma a Bíblia numa espécie de “bola de cristal”, que tem como função mostrar o futuro e o que se deve ou não fazer em cada situação particular. Nem se concebe a profecia como crítica, como juízo, ou como algo que acontece como conseqüência de se quebrar a aliança com Deus. Nesse sentido, a atualização dos textos proféticos praticamente inexiste.
Se os profetas bíblicos não podiam, de regra, além da denúncia em si, tomar qualquer atitude concreta (exceto algumas ações simbólicas), hoje, quem tem a oportunidade de, além da crítica, fazer algo concreto no sentido de mudar a situação objeto da denúncia e não o faz é, no mínimo, demagogo. Talvez seja hipócrita. No caso da Igreja, tem-se visto muita indiferença.
Mas penso que Deus não se serve apenas da Igreja ou de seus membros individuais para mostrar a sua vontade e aquilo que o desagrada. Aliás, a Igreja, ao longo da história e desde muito cedo, esqueceu-se de sua função profética e tem muito mais legitimado do que denunciado os desmandos feitos no intuito de se manterem privilégios políticos e econômicos – inclusive os que ela própria, Igreja, adquiriu e desejava manter.
Assim, partindo do pressuposto de que a profecia continua sendo aquilo que, principalmente, sempre foi – ou seja, denúncia – o papel da palavra profética hoje é, como no caso dos profetas bíblicos, essencialmente, o de apontar as mazelas da sociedade. Porém, não apenas a denúncia pela denúncia, mas uma crítica seguida de ações politicamente engajadas, isto é, de forma participativa e concreta.
Creio que o movimento ecumênico e o diálogo inter-religioso, neste respeito, ocupam papel fundamental: o de mostrar que a palavra da Igreja (e não de parte dela) é, sim, relevante, pois, se balizada pelas Escrituras, é a palavra do próprio Cristo.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A "manipulação de Deus" no cristianismo contemporâneo

Handall Fabrício Martins


Para os profetas vétero-testamentários, a única coisa absoluta, suprema, era o próprio Deus; nada mais, nada menos. Para os demais homens com quem os profetas lidavam, Deus poderia até ser presumidamente concebido como a realidade mais elevada, mas, na prática, Deus era tratado como apenas mais uma dentre as tantas realidades circundantes. Daí não se perceber, de fato, a diferença entre Deus e as riquezas, ou entre Deus e os impérios. Ou, ainda, via-se Deus como algo tão próximo que poderia até ser domesticado, manipulado. A noção tão elevada que os profetas tinham de Deus era consequência direta de sua profunda experiência religiosa. Só quem se sente assombrado por esse Deus supremo, soberano, é capaz de receber e entender a sua mensagem.
Segundo von Rad, não existe nenhuma verdade de fé que não possa ser manipulada idolatricamente. Com efeito, a idolatria pode ter como objeto qualquer realidade que venha a ser divinizada pelo homem. Karl Barth chega a dizer que a religião é o mais pernicioso de todos os empreendimentos humanos, injuriando a transcendência de Deus e negando-lhe o caráter de “Totalmente Outro”. O homem religioso, para Barth, é o que quer captar Deus para seu proveito próprio e, assim, se afunda na mentira e na idolatria: o homem pensa estar servindo a Deus, mas está, na verdade, cultuando um ídolo feito por ele mesmo, à sua própria imagem e semelhança.
Tillich diz que fé é estar possuído pelo incondicional (o infinito). Mas o homem não pode tomar posse do infinito, como se este fosse sua propriedade. A fé idólatra confere à realidade limitada e relativa uma dimensão absoluta e incondicional. Eis a ambiguidade do sagrado: a fé pode salvar ou destruir a pessoa. Se o conteúdo da fé é uma realidade limitada elevada ao caráter incondicional e último, a pessoa pode se encaminhar para o desespero e a desintegração total. Criticando as distorções da fé no Protestantismo, Tillich as enumerou segundo três tipos: a fé concebida ou como conhecimento (intelectualismo), ou como ato da vontade (moralismo), ou identificada com sentimento (emocionalismo). Contra essas distorções, Tillich formulou o Princípio Protestante, cujo acento principal é seu caráter profético. Isso significa perceber que as expressões de fé não podem ser elevadas à ultimacidade. A infalibilidade conduz a uma fé estática, que não questiona mais. Todas as instituições, inclusive a Igreja, estão sujeitas a esse julgamento profético.
Falar da “manipulação de Deus” no cristianismo significa falar de um gênero maior, qual seja a “manipulação do sagrado”, que representa uma postura religiosa que clama por uma mediação no trato com o transcendente, o que acaba por desembocar numa relação impessoal com o divino e numa religiosidade interesseira e imediatista, ou seja, que busca resultados práticos e rápidos. Analogicamente, tratar do tema “manipulação de Deus” no cristianismo contemporâneo tem tudo a ver com o fenômeno religioso tal como ele é entendido e vivenciado na pós-modernidade.
Acredito que algumas constatações são sintomáticas. A prática de uma religiosidade mágica, por exemplo, carente de mediações, impessoal, estritamente pragmática e utilitarista, tal qual a sociedade capitalista em que vivemos, atesta muito bem essa maneira de encarar a religião em geral e o cristianismo em particular. No cotidiano, essa religiosidade mágica é consequência da mentalidade de que se pode “barganhar” com Deus, sobretudo pelos dízimos e ofertas. É a mercantilização do sagrado, o comércio de bens simbólicos que tem marcado a religiosidade pós-moderna, produto também do consumismo do nosso tempo.
Outro aspecto pernicioso tem sido a banalização do sobrenatural. Ora, Deus não faz milagre toda hora, em todo o tempo. Se assim, fora, tais acontecimentos, de modo algum poderiam ser chamados milagres. Mas é assim que muitos cristãos da atualidade – sobretudo pentecostais e neopentecostais – veem o agir de Deus no mundo: uma intervenção constante do “mundo espiritual” (anjos e demônios) no mundo físico, transmutando a realidade natural sempre que se põe a fé em ação.
Eu apontaria, ainda, a moralização religiosa enquanto agudização do aspecto privado da religiosidade, fruto da subjetivação da fé centrada na experiência, no emocionalismo e no individualismo, o que acaba por suprimir o aspecto ético societário, imprescindível num testemunho cristão coerente com a verdade do Evangelho.
A reflexão em torno do “princípio protestante”, formulado por Tillich, parece-me extremamente atual e necessária, haja vista seu caráter profético que a si tudo submete, possibilitando, entre outras coisas, não guindar o efêmero ao status de perene, nem o penúltimo ao de último, o relativo ao de absoluto, o finito ao de infinito, o condicional ao de incondicional, um ídolo ao de Deus.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

ADENDO

Apenas gostaria de informar que fiz alguns acréscimos ao meu post "teologar", abaixo. Como não sabia se ficaria melhor um post em separado complementando aquele, resolvi fazer os acréscimos nele mesmo. Espero que isso não aconteça de novo. Mas é que tenho o triste - talvez, feliz - hábito de ficar revendo as coisas que escrevi e tentando aprimorá-las. Mas também sei que num blog isso deve ser evitado, pois quem já leu as mensagens antigas não costuma ficar voltando para relê-las, eu acho. Então, se não for pedir muito - sobretudo pra quem já leu a postagem original -, gostaria que a lessem com os acréscimos, ok? Abs.


domingo, 4 de abril de 2010

SINCRONICIDADE

Depois de ter publicado meu último post, fiquei pensando sobre a Páscoa e que seria interessante eu escrever algo a respeito e postar no blog. Daí, quase que instantaneamente, me veio à mente: "ora, o soneto 'recomeço', minha última publicação, tem o mesmo sentido que a Páscoa - ressurreição, esperança, perspectiva, ..., recomeço!".
Isso eram quase cinco da manhã de hoje, quando os fogos de artifício anunciavam o início da missa em praça pública próximo de minha casa, como parte dos festejos da Semana Santa. Senti-me feliz, pois não havia escrito nada aos meus amigos e conhecidos a propósito dessa data, a qual é, seguramente, disparado, a mais importante para os cristãos.
Um bom junguiano diria se tratar de um episódio de sincronicidade. Acho que foi isso mesmo. E já que eu não acredito em casualidade...


sexta-feira, 2 de abril de 2010

RECOMEÇO (soneto)

Handall Fabrício Martins


É tão bom ter renovada a esperança
de, finalmente, viver satisfeito,
feliz; de saber que nunca se alcança
o que se quer sem que exista no peito

a pureza de um coração criança,
e a coragem de dizer “eu aceito”
quando lhe ofertam, com perseverança,
a chance de viver algo perfeito.

É algo simplesmente fascinante
redescobrir o sentido da vida,
doar, de novo, um sorriso ao semblante.

E a existência, por si mesma traída,
hoje persevera, segue adiante.
A que, antes, sem cor, ei-la colorida.