"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A "manipulação de Deus" no cristianismo contemporâneo

Handall Fabrício Martins


Para os profetas vétero-testamentários, a única coisa absoluta, suprema, era o próprio Deus; nada mais, nada menos. Para os demais homens com quem os profetas lidavam, Deus poderia até ser presumidamente concebido como a realidade mais elevada, mas, na prática, Deus era tratado como apenas mais uma dentre as tantas realidades circundantes. Daí não se perceber, de fato, a diferença entre Deus e as riquezas, ou entre Deus e os impérios. Ou, ainda, via-se Deus como algo tão próximo que poderia até ser domesticado, manipulado. A noção tão elevada que os profetas tinham de Deus era consequência direta de sua profunda experiência religiosa. Só quem se sente assombrado por esse Deus supremo, soberano, é capaz de receber e entender a sua mensagem.
Segundo von Rad, não existe nenhuma verdade de fé que não possa ser manipulada idolatricamente. Com efeito, a idolatria pode ter como objeto qualquer realidade que venha a ser divinizada pelo homem. Karl Barth chega a dizer que a religião é o mais pernicioso de todos os empreendimentos humanos, injuriando a transcendência de Deus e negando-lhe o caráter de “Totalmente Outro”. O homem religioso, para Barth, é o que quer captar Deus para seu proveito próprio e, assim, se afunda na mentira e na idolatria: o homem pensa estar servindo a Deus, mas está, na verdade, cultuando um ídolo feito por ele mesmo, à sua própria imagem e semelhança.
Tillich diz que fé é estar possuído pelo incondicional (o infinito). Mas o homem não pode tomar posse do infinito, como se este fosse sua propriedade. A fé idólatra confere à realidade limitada e relativa uma dimensão absoluta e incondicional. Eis a ambiguidade do sagrado: a fé pode salvar ou destruir a pessoa. Se o conteúdo da fé é uma realidade limitada elevada ao caráter incondicional e último, a pessoa pode se encaminhar para o desespero e a desintegração total. Criticando as distorções da fé no Protestantismo, Tillich as enumerou segundo três tipos: a fé concebida ou como conhecimento (intelectualismo), ou como ato da vontade (moralismo), ou identificada com sentimento (emocionalismo). Contra essas distorções, Tillich formulou o Princípio Protestante, cujo acento principal é seu caráter profético. Isso significa perceber que as expressões de fé não podem ser elevadas à ultimacidade. A infalibilidade conduz a uma fé estática, que não questiona mais. Todas as instituições, inclusive a Igreja, estão sujeitas a esse julgamento profético.
Falar da “manipulação de Deus” no cristianismo significa falar de um gênero maior, qual seja a “manipulação do sagrado”, que representa uma postura religiosa que clama por uma mediação no trato com o transcendente, o que acaba por desembocar numa relação impessoal com o divino e numa religiosidade interesseira e imediatista, ou seja, que busca resultados práticos e rápidos. Analogicamente, tratar do tema “manipulação de Deus” no cristianismo contemporâneo tem tudo a ver com o fenômeno religioso tal como ele é entendido e vivenciado na pós-modernidade.
Acredito que algumas constatações são sintomáticas. A prática de uma religiosidade mágica, por exemplo, carente de mediações, impessoal, estritamente pragmática e utilitarista, tal qual a sociedade capitalista em que vivemos, atesta muito bem essa maneira de encarar a religião em geral e o cristianismo em particular. No cotidiano, essa religiosidade mágica é consequência da mentalidade de que se pode “barganhar” com Deus, sobretudo pelos dízimos e ofertas. É a mercantilização do sagrado, o comércio de bens simbólicos que tem marcado a religiosidade pós-moderna, produto também do consumismo do nosso tempo.
Outro aspecto pernicioso tem sido a banalização do sobrenatural. Ora, Deus não faz milagre toda hora, em todo o tempo. Se assim, fora, tais acontecimentos, de modo algum poderiam ser chamados milagres. Mas é assim que muitos cristãos da atualidade – sobretudo pentecostais e neopentecostais – veem o agir de Deus no mundo: uma intervenção constante do “mundo espiritual” (anjos e demônios) no mundo físico, transmutando a realidade natural sempre que se põe a fé em ação.
Eu apontaria, ainda, a moralização religiosa enquanto agudização do aspecto privado da religiosidade, fruto da subjetivação da fé centrada na experiência, no emocionalismo e no individualismo, o que acaba por suprimir o aspecto ético societário, imprescindível num testemunho cristão coerente com a verdade do Evangelho.
A reflexão em torno do “princípio protestante”, formulado por Tillich, parece-me extremamente atual e necessária, haja vista seu caráter profético que a si tudo submete, possibilitando, entre outras coisas, não guindar o efêmero ao status de perene, nem o penúltimo ao de último, o relativo ao de absoluto, o finito ao de infinito, o condicional ao de incondicional, um ídolo ao de Deus.

2 comentários:

  1. Aquela 'ordem' para reirada das sandálias por conta da santidade do solo, presume o querer do Deus daquele povo em manter uma certa distãncia neste primeiro momento de reaproximação. Me sugere algo de limitador para as tentativas de domesticação ou familiaridade entre o povo e a divindade, tão comuns naqueles tempos. A experiência do 'Deus terrível'( Segundo e Sanchis', evidência o direito divino de reservar-se ao mistério. Desta etapa pouco de original nos ficou, pois testemunhamos em nossos dias subversões daquela ordenanção que a cada dia tornam o divino cada vez mais lacaio e não senhor no terreno do sobrenatural.Cada dia mais ídolo e menos Deus como deveria ser.

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  2. Handall, exelente a atualização dos temas idolatria e comércio do sagrado.
    O comentário acima é meu, é que no momento estava no Gmail de Marluce.
    Forte abraço , Valvico.

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