"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Pela promoção do diálogo, da tolerância e, muito mais, do RESPEITO entre as religiões

(vídeo gravado para ser exibido na TV Record, como direito de resposta concedido pela justiça brasileira às religiões de matriz africana contra ataques por elas sofridos reiteradamente e veiculados na referida concessionária de canal público de televisão).
O mais interessante é que os produtores do vídeo fizeram do direito de resposta uma oportunidade de diálogo. Não contra-atacaram, mas convidaram à conversa, à partilha amorosa, à comunhão sem preconceitos. Confesso que me emocionei e percebi o quanto ainda preciso aprender a amar e respeitar o diferente. Pois amar quem é "igual" a mim é muito fácil...

sábado, 24 de dezembro de 2011

Decreto de Natal

Frei Betto

Fica decretado que, neste Natal, em vez de dar presentes, nos faremos presentes junto aos famintos, carentes e excluídos. Papai Noel será malhado como Judas e, lacradas as chaminés, abriremos corações e portas à chegada salvífica do Menino Jesus.

Por trazer a muitos mais constrangimentos que alegrias, fica decretado que o Natal não mais nos travestirá no que não somos: neste verão escaldante, arrancaremos da árvore de Natal todos os algodões de falsas neves; trocaremos nozes e castanhas por frutas tropicais; renas e trenós por carroças repletas de alimentos não perecíveis; e se algum Papai Noel sobrar por aí, que apareça de bermuda e chinelas.
Fica decretado que, cartas de crianças, só as endereçadas ao Menino Jesus, como a do Lucas, que escreveu convencido de que Caim e Abel não teriam brigado se dormissem em quartos separados; propôs ao Criador ninguém mais nascer nem morrer, e todos nós vivermos para sempre; e, ao ver o presépio, prometeu enviar seu agasalho ao filho desnudo de Maria e José.
Fica decretado que as crianças, em vez de brinquedos e bolas, pedirão bênçãos e graças, abrindo seus corações para destinar aos pobres todo o supérfluo que entulha armários e gavetas. A sobra de um é a necessidade de outro, e quem reparte bens partilha Deus.
Fica decretado que, pelo menos um dia, desligaremos toda a parafernália eletrônica, inclusive o telefone e, recolhidos à solidão, faremos uma viagem ao interior de nosso espírito, lá onde habita Aquele que, distinto de nós, funda a nossa verdadeira identidade. Entregues à meditação, fecharemos os olhos para ver melhor.
Fica decretado que, despidas de pudores, as famílias farão ao menos um momento de oração, lerão um texto bíblico, agradecendo ao Pai de Amor o dom da vida, as alegrias do ano que finda, e até dores que exacerbam a emoção sem que se possa entender com a razão. Finita, a vida é um rio que sabe ter o mar como destino, mas jamais quantas curvas, cachoeiras e pedras haverá de encontrar em seu percurso.
Fica decretado que arrancaremos a espada das mãos de Herodes e nenhuma criança será mais condenada ao trabalho precoce, violentada, surrada ou humilhada. Todas terão direito à ternura e à alegria, à saúde e à escola, ao pão e à paz, ao sonho e à beleza.
Fica decretado que, nos locais de trabalho, as festas de fim de ano terão o dobro de seus custo convertido em cestas básicas a famílias carentes. E será considerado grave pecado abrir uma bebida de valor superior ao salário mensal do empregado que a serve.
Como Deus não tem religião, fica decretado que nenhum fiel considerará a sua mais perfeita que a do outro, nem fará rastejar a sua língua, qual serpente venenosa, nas trilhas da injúria e da perfídia. O Menino do presépio veio para todos, indistintamente, e não há como professar o "Pai Nosso" se o pão também não for nosso, mas privilégio da minoria abastada.
Fica decretado que toda dieta se reverterá em benefício do prato vazio de quem tem fome, e que ninguém dará ao outro um presente embrulhado em bajulação ou escusas intenções. O tempo gasto em fazer laços seja muito inferior ao dedicado a dar abraços.
Fica decretado que as mesas de Natal estarão cobertas de afeto e, dispostos a renascer com o Menino, trataremos de sepultar iras e invejas, amarguras e ambições desmedidas, para que o nosso coração seja acolhedor como a manjedoura de Belém.
Fica decretado que, como os reis magos, todos daremos um voto de confiança à estrela, para que ela conduza este país a dias melhores. Não buscaremos o nosso próprio interesse, mas o da maioria, sobretudo dos que, à semelhança de José e Maria, foram excluídos da cidade e, como uma família sem-terra, obrigados a ocupar um pasto, onde brilhou a esperança.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

De Mamon, dos Césares e outros rivais de Deus (prédica)

Handall Fabrício Martins
Mateus 22.15-22 (NTLH):
“Os fariseus saíram e fizeram um plano para conseguir alguma prova contra Jesus. Então mandaram que alguns dos seus seguidores e alguns membros do partido de Herodes fossem dizer a Jesus: - Mestre, sabemos que o senhor é honesto, ensina a verdade sobre a maneira de viver que Deus exige e não se importa com a opinião dos outros, nem julga pela aparência. Então o que o senhor acha: é ou não é contra a nossa Lei pagar impostos ao Imperador romano? Mas Jesus percebeu a malícia deles e respondeu: - Hipócritas! Por que é que vocês estão procurando uma prova contra mim? Tragam a moeda com que se paga o imposto! Trouxeram a moeda, e ele perguntou: - De quem são o nome e a cara que estão gravados nesta moeda? Eles responderam: - São do Imperador. Então Jesus disse: - Dêem ao Imperador o que é do Imperador e dêem a Deus o que é de Deus. Eles ficaram admirados quando ouviram isso. Então deixaram Jesus e foram embora.”
Novamente um estratagema para enredar Jesus em suas próprias palavras. Primeiro um elogio à sua integridade, depois a pergunta capciosa. Se Jesus respondesse “sim”, toda sua pregação poderia cair em descrédito diante do povo, pois a ocupação romana da terra era o que havia de mais humilhante para os judeus, além da miséria e fome causadas pelos altos impostos. Muito mais: numa perspectiva religiosa, pagar o imposto era o mesmo que aceitar o culto à pessoa do imperador. Na moeda mesma estava escrito: “Tibério César, Filho do Divino Augusto”. Por tudo isso, a maioria dos judeus era radicalmente contra o pagamento do imposto. Entretanto, se Jesus respondesse que o tributo não era devido, ele seria surpreendido numa atitude explícita de afronta ao império. Os próprios membros do partido de Herodes ali estavam para dar o flagrante.
Jesus, com sua réplica, questiona a divindade do César e, dessa forma, todo culto a ele prestado – que se revela também pelo pagamento do tributo – está deslegitimado. Mais: assim fazendo, Jesus também desautoriza e ridiculariza a prática de grande parte dos líderes judeus, que faziam um jogo duplo. Ou seja, ansiavam pelo fim da dominação romana, mas, ao mesmo tempo, reproduziam-na e usufruíam das benesses proporcionadas por ela, inclusive por meio do sistema de tributação. É claro que a maior parte dos impostos era repassada a Roma, mas as elites judaicas sustentavam seu luxo com a parte que retinham do total arrecadado pelos odiosos coletores de impostos. Quer dizer, de um lado, as lideranças judaicas negavam-se a queimar incenso ao divino César; porém, de outro, eram favorecidas com tal deificação.
O texto do Evangelho indicado para hoje – Mateus 22.15-22 – põe juntos fariseus e os partidários de Herodes numa armadilha para tentar fazer Jesus trair-se com suas próprias palavras. A narrativa de Lucas os classifica como “homens que deviam fingir que eram sinceros” (cf. Lc 20.20, NTLH). O interessante do texto é que, enquanto os falsos justos perguntam se é ou não é contra a lei de Moisés pagar impostos ao imperador romano, Jesus responde baseado numa concepção de justiça totalmente diferente: não se trata de pagar, mas de dar. Porém, não é um simples dar, mas um devolver ao César o que lhe é devido, bem como a Deus o que a Deus pertence.
Ora, se na moeda está a cara do seu proprietário, é porque o dinheiro pertence ao opressor romano e é preciso devolvê-lo a ele. Se na pergunta dos fariseus está subentendida a possibilidade de não pagar o imposto, também está uma outra, qual seja a de ficar, nesse caso, com o dinheiro. Mas Jesus vai além do suposto nacionalismo dos fariseus, indo ao cerne da questão, o que significa abandonar a dependência em relação ao dinheiro. Ou seja, não bastava romper com a dominação política romana, não. Era necessário acabar com a opressão que advinha do apego ao dinheiro e das possibilidades de exploração dos demais que este apego ensejava. A cara do César naquela moeda representa os poderes deste mundo, além de toda cobiça, violência e tirania humanas ao longo da história. 
Usando o imperativo, Mateus enfatiza a resposta de Jesus: devolvam ao imperador o que é dele; e, igualmente, a Deus o que é de Deus! No Sermão do Monte, Jesus já havia dito que era impossível servir a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo (Mt 6.24). Isto é, não há como harmonizar o culto a Deus com o culto a Mamon, aqui simbolizado pelo sistema imperial romano. 
Os impostos são necessários a uma coletividade no contexto de governos democráticos que prestem contas do uso correto desses recursos para o bem daqueles que contribuem. Isso é o que cabe aos “Césares”. Porém, devemos dar a Deus o que é de Deus! E o que é devido a Deus é muito mais do que o nosso dinheiro simplesmente. Devemos consagrar a Deus toda a nossa vida, em adoração e serviço.
Deus nos quer por inteiro porque nós, sozinhos, não podemos conduzir nossa própria vida. Podemos ser bons nos negócios, por exemplo, mas até isso é efêmero porque, neste mundo, estamos sempre sujeitos aos melindres dos “Césares”. Os governos passam. Perdem-se os investimentos. Patrimônios se desvalorizam. E qual o proveito em se ganhar o mundo inteiro e perder a própria vida?
Deus é o dono da nossa vida. Se somos algo, só o somos porque Deus nos deu o fôlego da vida. Se temos algo, só o temos porque Deus nos deu condições e possibilidades, a fim de que valorizássemos o que temos, nos desprendêssemos um pouco disso e ajudássemos aqueles que necessitam.
Jesus, assim como os profetas antes dele, percebeu que o dinheiro havia se tornado um ídolo – rival de Deus – e a busca desenfreada pelo enriquecimento suplantava qualquer possibilidade de se praticar a justiça e o direito.  Ora, se o primeiro dos dez mandamentos já estava esquecido – Deus havia sido substituído por Mamon –, os demais, principalmente os que se referem a não matar, não furtar, não cometer perjúrio e não cobiçar o que era do próximo, deixaram de ter qualquer valor. O “novo decálogo” poderia, quem sabe, ser assim formulado:
1) Eu, Mamon, sou o deus que te livrou da pobreza e da humilhação; podes ter quantos deuses desejares, desde que eles não te exijam o desapego ao dinheiro e nem que o gastes fazendo o bem a outros além de a ti mesmo;
2) Não tenhas pudores em te esqueceres de Javé, pois eu, Mamon, sou suficientemente poderoso para dar-te o que quiseres, riquezas sem medida e sem que te preocupes em teres quaisquer escrúpulos ou mesmo de seres fiel a mim;
3) Podes e deves ostentar a tua riqueza, inclusive humilhando o pobre e disputando com outros sobre quem é o mais rico e influente;
4) Nunca te permitirás o descanso, até o dia em que te tornares consideravelmente rico para folgares todo o tempo, enquanto teus servos e escravos trabalharão incessantemente a fim de aumentarem os teus bens;
5) No dia em que teu pai e tua mãe se tornarem velhos e um estorvo para ti, não hesites em abandoná-los em qualquer sarjeta, pois, do contrário, ser-te-iam um fardo pesado, atrapalhando-te em gozares com teus amigos e mulheres dos prazeres que te concedi;
6) No dia em que te enamorares da mulher do teu vizinho, sente-te à vontade para a possuíres, inclusive à força; se for necessário matar o teu vizinho para coabitares com sua mulher, faze-o sem remorso, pois eu, Mamon, compreenderei que o fizeste com o único intuito de saciares a tua cobiça e o teu egoísmo;
7) Mata todo aquele que te atrapalhar em realizares teus desejos, mesmo o mais fútil; eu, Mamon, me agrado quando um de meus servos age inescrupulosamente a fim de satisfazer seus próprios interesses;
8) Apenas com trabalho honesto nunca te farás rico; portanto, podes corromper as autoridades, te apropriar do que não é teu, tomar qualquer bem ou propriedade à força, quanto quiseres, pois isso me agrada;
9) Quando fores a alguma demanda contra o teu próximo, podes mentir o quanto for necessário para te escusares; mas não te esqueças de subornar previamente os juízes que decidirão a questão, para que te livrem e saibam que podem sempre esperar de ti outros subornos, caso venhas a ter que te apresentar diante deles novamente noutra causa;
10) Não sossegarás enquanto não tomares do teu próximo tudo o que ele tem, até vê-lo na miséria; não ponhas limite aos teus desejos; de tudo o que se agradarem os teus olhos apossa-te: vai e toma para ti, pois é teu.
“[...] Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro, por cujo desenfreado desejo alguns se afastaram da fé, e a si mesmos se afligem com múltiplos tormentos” (1 Tm 6.10).
A denúncia profética de Jesus parece adequar-se perfeitamente a todos os males sociais produzidos hoje pelo capitalismo:
a) leis, inclusive trabalhistas, que beneficiam cada vez mais os grandes conglomerados econômicos do que os trabalhadores;
b) venda de sentenças pelo judiciário;
c) vazamento de informações privilegiadas pelos governos;
d) a impunidade dos “ladrões de colarinho branco” e a prisão de ladrões de galinha;
e) mensalões;
f) interferência política mútua entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, em vez de independência e autonomia entre eles;
g) taxas de juros aviltantes;
h) lucros exorbitantes nas vendas de produtos;
i) carga tributária absurda;
j) jornadas de trabalho desumanas;
I) má vontade na resolução do problema da terra (reforma agrária);
m) baixos salários, que não são suficientes para atender as necessidades mais básicas das famílias;
n) enorme desigualdade na distribuição de renda, com um abismo separando ricos e pobres, bem como a concentração da riqueza cada vez mais nas mãos de uns poucos.
Os exemplos se multiplicariam, mas parece que os acima citados são o bastante a propósito do que se gostaria de evidenciar: o que alguns chamaram de “A idolatria do Mercado”. Segundo esses, tem-se optado pelos investidores e não pelos pobres, à custa da miséria e do sacrifício, literalmente, destes últimos. Mais: o que presenciamos hoje é uma gigantesca luta de deuses – rivais de Deus – que têm ocupado o lugar do Deus verdadeiro.
Será que devemos nos conformar com a idolatria do mercado, com o consumismo irracional, nos entregando a essa lógica econômica que supervaloriza as mercadorias, o dinheiro e o capital, em detrimento da dignidade e da vida da pessoa humana? Existem muitas ideologias e até teologias que justificam essa entrega, dando a entender que o sistema econômico atual, com todas as suas terríveis consequências, é o jeito normal de se viver. Mas também existem arautos proféticos que se levantam contra a barbárie promovida pelo capitalismo, erguendo novamente a bandeira da solidariedade e do altruísmo entre os homens, a despeito do individualismo e da competitividade que o mercado tenta impor, a qualquer preço. De que lado nós estamos?
Portanto, irmãos e irmãs, entreguem somente a Deus aquilo que nenhuma autoridade, seja ela política ou religiosa, pode exigir, porque todos os poderes deste mundo passarão e, um dia, no futuro, todos os dólares, reais ou euros, tão escrupulosamente guardados, também serão peças de colecionadores, e os que tiveram o poder religioso nas mãos, quando muito, apenas serão lembrados como nomes do passado.
Amém!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

"Quero trazer à memória o que me pode dar esperança" (Lm 3.21) - prédica, a propósito do 1.º domingo do Advento

Handall Fabrício Martins

O texto do AT indicado pelo lecionário para hoje é Isaías 64.1-9. Mas estaríamos sendo injustos com o texto bíblico se nos ativéssemos apenas a esses nove versículos. Em verdade, os versos 1-9 do capítulo 64 estão inseridos na segunda parte de um grande poema (63.7-64.12), um salmo de súplica coletivo, comparável aos Salmos 44 e 89. Essa oração poético-profética também evoca uma memória histórica, que é um assunto recorrente noutros Salmos, como o 78, o 105 e o 106, e é fundamental quando Israel volta do exílio em Babilônia e carece de reconstruir a unidade nacional e pensar o seu futuro como povo.
O império persa – o domínio que se seguiu ao babilônico – tinha como parte de sua política de dominação a permissão de voltar à terra natal para aqueles que haviam sido tirados de sua pátria pelos babilônios. Isso incluía, no caso judaico, a reconstrução de Jerusalém e do templo da cidade, a fim de reorganizar a vida política e econômica a partir do principal fator agregador dos judeus: sua religião.  
Outro projeto – alternativo, digamos assim – de reconstrução da nação judaica na volta do exílio foi o dos profetas. É nesse contexto que surge o profeta Isaías, autor do nosso texto de hoje. A tradição profética que aparece nesse período – cujo exemplo é Isaías – entendia que a reconstrução da nação judaica precisava começar pelo estabelecimento da prática da justiça entre o povo, e não pelo restabelecimento de uma hierarquia sacerdotal no Templo de Jerusalém. Consistia na esperança de uma possível ação do Deus que vê o sofrimento e a aflição do seu povo e desce, desde os céus, para livrar e salvar. É a esperança no Deus que desce como fogo, queimando tudo que é estranho à sua própria Aliança, fazendo novas todas as coisas
Esses grupos proféticos não afirmavam a pureza étnica dos judeus, nem Israel como uma nação eleita por Deus, não. Antes, ergueram a bandeira da justiça para com os mais necessitados da sociedade, pois isso era, com efeito, o cerne da Aliança de Deus com o povo de Israel depois do Êxodo do Egito. Podemos dizer, então, que Isaías foi um profeta arauto da reconstrução e da restauração de Israel depois do exílio babilônico.
Feitas essas considerações, todos e todas que puderem, coloquem-se de pé, em reverência à palavra de Deus, e leiamos:
Isaías 63.7-64.12 (NTLH):
“Anunciarei o amor de Deus, o SENHOR, e darei graças por tudo o que ele tem feito; pois o SENHOR nos abençoou ricamente, ele mostrou grande bondade para com o seu povo por causa da sua compaixão e do seu grande amor. O SENHOR disse: ‘Eles são o meu povo, são filhos que nunca me trairão.’ E por isso ele os livrou de todos os seus sofrimentos. Quem os salvou foi ele mesmo, e não um  anjo  ou qualquer outro mensageiro. Por causa do seu amor e da sua compaixão, ele os salvou. E todos os dias, ano  após ano, ele os pegava e carregava  no  colo. Mas eles se revoltaram contra  Deus e ofenderam o seu santo  Espírito. Por isso, Deus se tornou inimigo deles e começou a lutar contra eles. Então eles lembraram do passado, lembraram de Moisés, servo  de Deus, e perguntaram: ‘Onde está o SENHOR, que salvou do mar  o seu povo, que salvou o seu rebanho e Moisés, que  era o pastor? Onde está aquele que pôs o seu Espírito em Moisés, que fez com que o seu grande poder estivesse sempre com ele? A fim de conquistar fama eterna, o SENHOR dividiu o mar na frente do seu povo e o fez passar pelas águas profundas. Eles passaram seguros, como cavalos selvagens que não tropeçam, como o  gado  que desce calmamente para os vales. O Espírito do SENHOR os estava levando para um lugar de descanso.’ Foi assim, ó SENHOR, que guiaste o teu povo e conseguiste para ti mesmo um  nome  famoso. Ó Deus, olha para nós lá do céu, lá do lugar santo e glorioso onde moras. Onde está o teu poder e o teu cuidado por nós? Não retires de nós o teu amor e a tua compaixão, pois tu és o nosso Pai. Os nossos antepassados Abraão e Jacó não se importam conosco, não fazem caso de nós. Mas tu, ó SENHOR Deus, és o nosso Pai, e desde o princípio nós te chamamos de ‘O nosso Salvador’. Ó Deus, por que fazes com que nos desviemos dos teus caminhos e tornas o nosso coração duro, para que não te temamos? Volta para nós, ó Deus, pois somos os teus servos, somos o povo que escolheste. Por um pouco de tempo, nós, o teu povo santo, fomos donos do teu Templo, mas agora ele é pisado pelos nossos inimigos. Tu nos tratas como se nunca tivesses sido o nosso governador, como se nós nunca tivéssemos sido o teu povo. Como gostaríamos que tu rasgasses os céus e descesses, fazendo as montanhas tremerem diante de ti! Elas seriam como a água que ferve em cima de um  fogo  forte. Os teus inimigos reconheceriam a tua fama e tremeriam de medo diante de ti. Quando fizeste coisas maravilhosas, que nós nem esperávamos, tu desceste do céu, e as montanhas tremeram diante de ti. Nunca ninguém viu ou ouviu falar de outro deus além de ti, de um deus que faz coisas assim em favor dos que confiam nele. Tu aceitas os que fazem com prazer o que é direito, os que lembram de viver de acordo com a tua vontade. Tu estavas irado conosco,  mas  nós continuamos a pecar; só seremos salvos se andarmos nos caminhos antigos. Todos nós nos tornamos impuros, todas as nossas boas ações são como trapos sujos. Somos como folhas secas; e os nossos pecados, como uma ventania, nos carregam para longe. Não há mais ninguém que ore a ti, ninguém que procure a tua ajuda. Por causa dos nossos pecados, tu te escondeste de nós e nos abandonaste. Mas tu, ó  SENHOR  Deus, és o nosso Pai; nós somos o barro, tu és o oleiro, todos nós fomos feitos por ti. Não continues tão irado, ó SENHOR, nem lembres para sempre os nossos pecados. Não esqueças que somos o teu povo. As tuas santas cidades viraram um deserto, Jerusalém está arrasada, o monte Sião está abandonado. O nosso belo e sagrado Templo, onde os nossos antepassados te louvaram, foi destruído pelo fogo. Tudo o que amávamos está em ruínas! Vendo tudo isso, ó SENHOR, não vais fazer nada? Será que vais ficar calado e nos castigar mais ainda?” Palavra do Senhor. Amém. Podem assentar-se.
Hoje é o primeiro domingo do Advento. Estamos iniciando mais um calendário litúrgico cristão. Mas, o que significa mesmo esse tempo chamado “Advento”? O tempo litúrgico cristão do Advento abrange os quatro domingos que nos preparam para celebrar o grande mistério do Cristo, a Encarnação, o nascimento de Jesus. É, ainda, um tempo que nos chama a atenção para uma possível, porém, inesperada intervenção de Deus na história e em nossas próprias vidas. O objetivo do Advento não é apenas nos preparar para o Natal, mas é também deixar nossa consciência mais viva para o fato de que os rumos da história pertencem a Deus, de que Deus tem, sim, interesse por nós, pela nossa vida, pelo nosso mundo, pela nossa história e de que também devemos estar prontos para as possíveis surpresas oriundas do agir de Deus. O tempo do Advento nos insere em toda a História da Salvação. Faz-nos estar na expectativa do Messias vivida pelo povo de Deus, mas, ao mesmo tempo, nos rememora o fato de que ele já veio e voltará no fim dos tempos. Manifestemos, pois, a nossa confiança em Deus e peçamos perdão pela falta de convicção que talvez nos tenha acometido durante o ano que se passou.
Dita essa palavra sobre o Advento, voltemos ao nosso texto de hoje, o texto de Isaías. Quem acompanhou atentamente a leitura deve estar achando que o lecionário está errado, pois o texto do profeta nada tem a ver com o Advento. Se Advento é o que eu acabei de dizer, parece não ter nada a ver mesmo, não é? Pois é, o texto de Isaías não guardaria nenhuma relação com o Advento se ambos – Isaías 63.7-64.12 e a mensagem do Advento – não concordassem em pelo menos duas coisas: 1.ª) em nos fazer recordar de todos os atos poderosos de Deus no passado; e, por isso mesmo, 2.ª) em nos reavivar a esperança na intervenção de Deus na história em nosso favor, para nossa salvação. Como quando Zacarias, pai de João, o batizador, louvando a Deus, disse:
“Bendito seja o Senhor,  Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo, e nos suscitou plena e poderosa salvação na casa de Davi, seu servo, como prometera, desde a antiguidade, por boca dos seus santos profetas, para nos libertar dos nossos inimigos e das mãos de todos os que nos odeiam; para usar de misericórdia com os nossos pais e lembrar-se da sua santa aliança e do juramento que fez a Abraão, o nosso pai, de conceder-nos que, livres das mãos de inimigos, o adorássemos  sem  temor, em  santidade  e  justiça  perante ele, todos os nossos dias. Tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo, porque precederás o Senhor, preparando-lhe os caminhos, para dar ao seu povo conhecimento da salvação, no redimi-lo dos seus pecados, graças à entranhável  misericórdia de nosso Deus, pela qual nos visitará o sol  nascente  das alturas, para alumiar os que jazem nas trevas e na sombra da morte, e dirigir os nossos pés  pelo caminho da paz” (Lc 1.68-79).
Também em Lucas 2.25-38, vemos os exemplos de Simeão e Ana que, ao verem o menino Jesus, recém-circuncidado, têm a certeza de que nele se cumpriram as promessas do Antigo Testamento. Mateus, por exemplo, em seu evangelho, o tempo todo faz uso da expressão: “para que se cumprisse o que fora dito por meio do profeta”. Tudo isso já seria suficiente pra mostrar que os judeus palestinenses de dois mil e poucos anos atrás estavam relembrando tudo o que Deus havia feito por eles no passado e mantinham viva a esperança da salvação naqueles dias. Algo também muito interessante – no âmbito do que se quer mostrar hoje – parece ser a ligação entre o versículo primeiro de Isaías 64 (que diz: “Oh! Se fendesses os céus e descesses!”) e os textos que narram a Encarnação, bem como o Batismo de Jesus (Marcos 1.10: “Jesus viu os céus se rasgarem”) a descida do Espírito sobre ele e a voz de Deus dizendo: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo.” Isaías 64.1a é o elo direto entre o texto de hoje e o período do Advento. Em Cristo, o próprio Deus desceu até nós. Depois, o Espírito Santo fendeu, rasgou os céus, e pairou sobre Jesus. Mais adiante, esse mesmo Jesus infundiu esse Espírito sobre nós, seus discípulos. E é esse Espírito que, segundo Jesus, nos faria lembrar tudo o que ele, Jesus, nos havia dito. É o Espírito Consolador, que nos ajuda a lembrar tudo aquilo que nos aviva a esperança (cf. Lm 3.21).
Podemos considerar dois aspectos importantes desse relevante ato de recordar. De um lado, significa viver de novo, de alguma maneira, os acontecimentos evocados, sobretudo quando se trata de acontecimentos ou de tempos em que se experimentou a graça, a bondade e a salvação da parte de Deus. Por outro lado, recordar também implica e supõe a existência de uma memória ou conhecimento prévio que, por alguma razão, havia sido esquecido, ignorado ou, simplesmente, deixado de lado, mas que permanece ali e pode ser recuperado a qualquer momento.
Isaías nos diz que Deus aceita aqueles que fazem o que é direito, que praticam a justiça, os que vivem segundo a sua santa vontade, trilham os caminhos antigos, e não aqueles que vivem uma religiosidade meramente ritual, legalista, parcial, domingueira, de aparências. Lembremos novamente o que disse outro profeta, este citado por Jesus: “Misericórdia quero, não holocaustos” (Mt 9.13, cf. Os 6.6). Ainda que o mesmo Isaías, em nosso texto de hoje, reconheça que a nossa justiça própria, as nossas boas ações sejam como trapo sujo. Somos quais folhas secas, ele diz, e o nosso pecado, como o vento, nos leva pra longe, longe de Deus. Só o próprio Deus pode nos capacitar, pelo seu Espírito, a praticar o amor e o perdão, a justiça e a misericórdia, a graça e a benevolência. Ou seja, cultuar e servir a Deus como é devido e como ele merece. Jesus disse (cf. Jo 15.5b): “Sem mim nada podeis fazer”. Aquilo que fazemos por nós mesmos redunda em pecado e aflição. Mas, quando deixamos que o Espírito de Deus nos mova, tudo resulta com significado e perfeição.  
Ao deparar-me com o texto indicado pelo lecionário para hoje, pensei como Deus é fiel e perfeito em seus caminhos. Em minha humilde avaliação, julguei ser uma palavra que a igreja estava verdadeiramente precisando ouvir. Era uma mensagem que vinha diretamente ao encontro das necessidades da Primeira Igreja. O texto de hoje fala da esperança da salvação: ouvindo a palavra profética – a qual nos rememora os atos passados de Deus – reconhecemos nossos próprios pecados, o que nos faz cair, rendidos, diante de Deus, de sua glória excelsa, em súplice oração.
Essa grande passagem de Isaías que lemos hoje, ela mesma é uma oração de quem reconhecia, sim, o próprio pecado, mas, recordava o que Deus havia feito no passado, apelando à memória do próprio Deus, como se Deus tivesse esquecido! Vejam só! O profeta apelou à misericórdia e à bondade de Deus. É como se o profeta mexesse com as entranhas de Deus. O profeta teve a petulância de lembrar Deus de que ele, Deus, não era homem para mentir, nem filho do homem para se arrepender (cf. Nm 23.19). Lembrou Deus de que ele, Deus, era fiel, ainda que nós sejamos infiéis (cf. 2 Tm 2.13). E o profeta fez isso em oração.  Isaías colocou-se em oração entre Deus e o povo, ele intercedeu pelo povo, à semelhança do que Abraão fez por Sodoma: “Destruirás a cidade se houver ali dez justos?” – cf. Gn 18.22-33. Deus disse que não.
Estamos passando por momentos de turbulência na Primeira Igreja. Mas tenho certeza de que temos muito mais do que dez justos aqui, e orando. Tiago nos diz que “muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo” (Tg 5.16b). A Primeira Igreja tem uma história, e uma história de 83 anos. 83 anos de fé, de perseverança e de testemunho nesta cidade. De lutas? Sim, mas de vitórias e de esperança. Já passamos por momentos muito mais difíceis e vencemos. Temos, hoje, aqui, provas vivas do que estou afirmando. Pessoas que passaram por todos esses momentos aos quais me refiro. Precisamos crer que Deus está no controle da situação. Sem fé, irmãos e irmãs, é impossível agradar a Deus (cf. Hb 11.6). Oramos porque cremos. Esperamos porque cremos. Confiamos porque cremos. E cremos porque Deus é fiel. Foi fiel no passado e será sempre fiel.  
Neste tempo do Advento, irmãos e irmãs, lembremos que Jesus, o Deus Emanuel, está conosco e tem contemplado nossas lutas e nossas dores. Como acontecera com os discípulos a caminho de Emaús (Lc 24.13-35), Jesus caminha conosco, ao nosso lado, a nossa senda.
Finalizando, com a esperança renovada, ouçamos as palavras do poeta:

Recomeço (soneto)

É tão bom ter renovada a esperança
de, finalmente, viver satisfeito,
Feliz! De saber que nunca se alcança
o que se quer sem que exista no peito

a pureza de um coração-criança
e a coragem de dizer “eu aceito”
quando lhe ofertam, com aventurança,
a chance de viver algo perfeito.

É algo simplesmente fascinante
redescobrir o sentido da vida,
doar, de novo, um sorriso ao semblante.

       (...)

E a existência, por si mesma traída,
hoje persevera, e segue adiante.
(...) A que, antes, sem cor, ei-la colorida!

 AMÉM!