"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

De Mamon, dos Césares e outros rivais de Deus (prédica)

Handall Fabrício Martins
Mateus 22.15-22 (NTLH):
“Os fariseus saíram e fizeram um plano para conseguir alguma prova contra Jesus. Então mandaram que alguns dos seus seguidores e alguns membros do partido de Herodes fossem dizer a Jesus: - Mestre, sabemos que o senhor é honesto, ensina a verdade sobre a maneira de viver que Deus exige e não se importa com a opinião dos outros, nem julga pela aparência. Então o que o senhor acha: é ou não é contra a nossa Lei pagar impostos ao Imperador romano? Mas Jesus percebeu a malícia deles e respondeu: - Hipócritas! Por que é que vocês estão procurando uma prova contra mim? Tragam a moeda com que se paga o imposto! Trouxeram a moeda, e ele perguntou: - De quem são o nome e a cara que estão gravados nesta moeda? Eles responderam: - São do Imperador. Então Jesus disse: - Dêem ao Imperador o que é do Imperador e dêem a Deus o que é de Deus. Eles ficaram admirados quando ouviram isso. Então deixaram Jesus e foram embora.”
Novamente um estratagema para enredar Jesus em suas próprias palavras. Primeiro um elogio à sua integridade, depois a pergunta capciosa. Se Jesus respondesse “sim”, toda sua pregação poderia cair em descrédito diante do povo, pois a ocupação romana da terra era o que havia de mais humilhante para os judeus, além da miséria e fome causadas pelos altos impostos. Muito mais: numa perspectiva religiosa, pagar o imposto era o mesmo que aceitar o culto à pessoa do imperador. Na moeda mesma estava escrito: “Tibério César, Filho do Divino Augusto”. Por tudo isso, a maioria dos judeus era radicalmente contra o pagamento do imposto. Entretanto, se Jesus respondesse que o tributo não era devido, ele seria surpreendido numa atitude explícita de afronta ao império. Os próprios membros do partido de Herodes ali estavam para dar o flagrante.
Jesus, com sua réplica, questiona a divindade do César e, dessa forma, todo culto a ele prestado – que se revela também pelo pagamento do tributo – está deslegitimado. Mais: assim fazendo, Jesus também desautoriza e ridiculariza a prática de grande parte dos líderes judeus, que faziam um jogo duplo. Ou seja, ansiavam pelo fim da dominação romana, mas, ao mesmo tempo, reproduziam-na e usufruíam das benesses proporcionadas por ela, inclusive por meio do sistema de tributação. É claro que a maior parte dos impostos era repassada a Roma, mas as elites judaicas sustentavam seu luxo com a parte que retinham do total arrecadado pelos odiosos coletores de impostos. Quer dizer, de um lado, as lideranças judaicas negavam-se a queimar incenso ao divino César; porém, de outro, eram favorecidas com tal deificação.
O texto do Evangelho indicado para hoje – Mateus 22.15-22 – põe juntos fariseus e os partidários de Herodes numa armadilha para tentar fazer Jesus trair-se com suas próprias palavras. A narrativa de Lucas os classifica como “homens que deviam fingir que eram sinceros” (cf. Lc 20.20, NTLH). O interessante do texto é que, enquanto os falsos justos perguntam se é ou não é contra a lei de Moisés pagar impostos ao imperador romano, Jesus responde baseado numa concepção de justiça totalmente diferente: não se trata de pagar, mas de dar. Porém, não é um simples dar, mas um devolver ao César o que lhe é devido, bem como a Deus o que a Deus pertence.
Ora, se na moeda está a cara do seu proprietário, é porque o dinheiro pertence ao opressor romano e é preciso devolvê-lo a ele. Se na pergunta dos fariseus está subentendida a possibilidade de não pagar o imposto, também está uma outra, qual seja a de ficar, nesse caso, com o dinheiro. Mas Jesus vai além do suposto nacionalismo dos fariseus, indo ao cerne da questão, o que significa abandonar a dependência em relação ao dinheiro. Ou seja, não bastava romper com a dominação política romana, não. Era necessário acabar com a opressão que advinha do apego ao dinheiro e das possibilidades de exploração dos demais que este apego ensejava. A cara do César naquela moeda representa os poderes deste mundo, além de toda cobiça, violência e tirania humanas ao longo da história. 
Usando o imperativo, Mateus enfatiza a resposta de Jesus: devolvam ao imperador o que é dele; e, igualmente, a Deus o que é de Deus! No Sermão do Monte, Jesus já havia dito que era impossível servir a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo (Mt 6.24). Isto é, não há como harmonizar o culto a Deus com o culto a Mamon, aqui simbolizado pelo sistema imperial romano. 
Os impostos são necessários a uma coletividade no contexto de governos democráticos que prestem contas do uso correto desses recursos para o bem daqueles que contribuem. Isso é o que cabe aos “Césares”. Porém, devemos dar a Deus o que é de Deus! E o que é devido a Deus é muito mais do que o nosso dinheiro simplesmente. Devemos consagrar a Deus toda a nossa vida, em adoração e serviço.
Deus nos quer por inteiro porque nós, sozinhos, não podemos conduzir nossa própria vida. Podemos ser bons nos negócios, por exemplo, mas até isso é efêmero porque, neste mundo, estamos sempre sujeitos aos melindres dos “Césares”. Os governos passam. Perdem-se os investimentos. Patrimônios se desvalorizam. E qual o proveito em se ganhar o mundo inteiro e perder a própria vida?
Deus é o dono da nossa vida. Se somos algo, só o somos porque Deus nos deu o fôlego da vida. Se temos algo, só o temos porque Deus nos deu condições e possibilidades, a fim de que valorizássemos o que temos, nos desprendêssemos um pouco disso e ajudássemos aqueles que necessitam.
Jesus, assim como os profetas antes dele, percebeu que o dinheiro havia se tornado um ídolo – rival de Deus – e a busca desenfreada pelo enriquecimento suplantava qualquer possibilidade de se praticar a justiça e o direito.  Ora, se o primeiro dos dez mandamentos já estava esquecido – Deus havia sido substituído por Mamon –, os demais, principalmente os que se referem a não matar, não furtar, não cometer perjúrio e não cobiçar o que era do próximo, deixaram de ter qualquer valor. O “novo decálogo” poderia, quem sabe, ser assim formulado:
1) Eu, Mamon, sou o deus que te livrou da pobreza e da humilhação; podes ter quantos deuses desejares, desde que eles não te exijam o desapego ao dinheiro e nem que o gastes fazendo o bem a outros além de a ti mesmo;
2) Não tenhas pudores em te esqueceres de Javé, pois eu, Mamon, sou suficientemente poderoso para dar-te o que quiseres, riquezas sem medida e sem que te preocupes em teres quaisquer escrúpulos ou mesmo de seres fiel a mim;
3) Podes e deves ostentar a tua riqueza, inclusive humilhando o pobre e disputando com outros sobre quem é o mais rico e influente;
4) Nunca te permitirás o descanso, até o dia em que te tornares consideravelmente rico para folgares todo o tempo, enquanto teus servos e escravos trabalharão incessantemente a fim de aumentarem os teus bens;
5) No dia em que teu pai e tua mãe se tornarem velhos e um estorvo para ti, não hesites em abandoná-los em qualquer sarjeta, pois, do contrário, ser-te-iam um fardo pesado, atrapalhando-te em gozares com teus amigos e mulheres dos prazeres que te concedi;
6) No dia em que te enamorares da mulher do teu vizinho, sente-te à vontade para a possuíres, inclusive à força; se for necessário matar o teu vizinho para coabitares com sua mulher, faze-o sem remorso, pois eu, Mamon, compreenderei que o fizeste com o único intuito de saciares a tua cobiça e o teu egoísmo;
7) Mata todo aquele que te atrapalhar em realizares teus desejos, mesmo o mais fútil; eu, Mamon, me agrado quando um de meus servos age inescrupulosamente a fim de satisfazer seus próprios interesses;
8) Apenas com trabalho honesto nunca te farás rico; portanto, podes corromper as autoridades, te apropriar do que não é teu, tomar qualquer bem ou propriedade à força, quanto quiseres, pois isso me agrada;
9) Quando fores a alguma demanda contra o teu próximo, podes mentir o quanto for necessário para te escusares; mas não te esqueças de subornar previamente os juízes que decidirão a questão, para que te livrem e saibam que podem sempre esperar de ti outros subornos, caso venhas a ter que te apresentar diante deles novamente noutra causa;
10) Não sossegarás enquanto não tomares do teu próximo tudo o que ele tem, até vê-lo na miséria; não ponhas limite aos teus desejos; de tudo o que se agradarem os teus olhos apossa-te: vai e toma para ti, pois é teu.
“[...] Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro, por cujo desenfreado desejo alguns se afastaram da fé, e a si mesmos se afligem com múltiplos tormentos” (1 Tm 6.10).
A denúncia profética de Jesus parece adequar-se perfeitamente a todos os males sociais produzidos hoje pelo capitalismo:
a) leis, inclusive trabalhistas, que beneficiam cada vez mais os grandes conglomerados econômicos do que os trabalhadores;
b) venda de sentenças pelo judiciário;
c) vazamento de informações privilegiadas pelos governos;
d) a impunidade dos “ladrões de colarinho branco” e a prisão de ladrões de galinha;
e) mensalões;
f) interferência política mútua entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, em vez de independência e autonomia entre eles;
g) taxas de juros aviltantes;
h) lucros exorbitantes nas vendas de produtos;
i) carga tributária absurda;
j) jornadas de trabalho desumanas;
I) má vontade na resolução do problema da terra (reforma agrária);
m) baixos salários, que não são suficientes para atender as necessidades mais básicas das famílias;
n) enorme desigualdade na distribuição de renda, com um abismo separando ricos e pobres, bem como a concentração da riqueza cada vez mais nas mãos de uns poucos.
Os exemplos se multiplicariam, mas parece que os acima citados são o bastante a propósito do que se gostaria de evidenciar: o que alguns chamaram de “A idolatria do Mercado”. Segundo esses, tem-se optado pelos investidores e não pelos pobres, à custa da miséria e do sacrifício, literalmente, destes últimos. Mais: o que presenciamos hoje é uma gigantesca luta de deuses – rivais de Deus – que têm ocupado o lugar do Deus verdadeiro.
Será que devemos nos conformar com a idolatria do mercado, com o consumismo irracional, nos entregando a essa lógica econômica que supervaloriza as mercadorias, o dinheiro e o capital, em detrimento da dignidade e da vida da pessoa humana? Existem muitas ideologias e até teologias que justificam essa entrega, dando a entender que o sistema econômico atual, com todas as suas terríveis consequências, é o jeito normal de se viver. Mas também existem arautos proféticos que se levantam contra a barbárie promovida pelo capitalismo, erguendo novamente a bandeira da solidariedade e do altruísmo entre os homens, a despeito do individualismo e da competitividade que o mercado tenta impor, a qualquer preço. De que lado nós estamos?
Portanto, irmãos e irmãs, entreguem somente a Deus aquilo que nenhuma autoridade, seja ela política ou religiosa, pode exigir, porque todos os poderes deste mundo passarão e, um dia, no futuro, todos os dólares, reais ou euros, tão escrupulosamente guardados, também serão peças de colecionadores, e os que tiveram o poder religioso nas mãos, quando muito, apenas serão lembrados como nomes do passado.
Amém!

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