(Handall Fabrício Martins)
A religião de Israel passou por um longo e complexo processo de evolução: isso é consenso entre a grande maioria dos teólogos contemporâneos. Ora, tal como todo aspecto cultural de um povo e suas contingências inerentes, a religião do antigo Israel tem que ser inserida no conjunto maior que abarca as religiões do Antigo Oriente Próximo, no que diz respeito a suas aproximações e distinções. Só esse estudo mais amplo, comparativo entre os diferentes povos da época, pode tornar compreensíveis muitos aspectos que têm sido erroneamente interpretados e teologicamente deslocados de seu lugar original. O que isso teria a nos dizer? O que teríamos a aprender com o fato de ter havido contribuições de outros povos na formação e evolução do conceito de Deus no incipiente Israel? Qual a importância e quais as consequências de se considerar o javismo uma evolução (e não uma revolução) no contexto das religiões que lhe foram contemporâneas? Qual ou quais teologias ou ideologias serviram de sustentação à idéia desenvolvida em Israel de que ele era não o primogênito, mas o unigênito de Iahweh? Qual tem sido o respaldo para se considerar o Cristo propriedade única de um ou de outro grupo religioso, como um bem inalienável e de posse intransferível? Deve o cristianismo ser sectário ou agregador? Os desafios que se têm apresentado são grandes e variados, e as respostas que têm sido dadas, infelizmente, têm falhado, e muito, na consecução de pelo menos dois dos itens da oração sacerdotal de Jesus em João 16 e que refletem claramente o desejo do Mestre: o de que fôssemos um (como ele e o Pai o eram) e o de que nos amássemos uns aos outros (sinal que serviria de distintivo, de emblema para os cristãos).
De início, um fato que merece ser salientado – considerando a importância capital da religião judaica no surgimento do cristianismo e a continuidade entre o Primeiro e o Segundo Testamentos – é o de só se poder falar em judaísmo de fato a partir do final do período exílico e início do pós-exílico. Partindo dessa premissa, qual era, então, a religião praticada por Abraão, considerado o pai da fé? E a de Jacó, também chamado Israel? A quem os “filhos de Israel” clamaram quando da escravidão no Egito? Qual seria a prática religiosa de Moisés antes de ter aquela experiência singular com Iahweh e de ser por ele vocacionado? Teve a vivência anterior de Moisés algum reflexo na sua interpretação posterior de Deus? Qual o papel de Jetro, o midianita, sogro de Moisés, no entendimento que este teve acerca de Deus? Ao que parece, a menção da existência de Jetro por si só é um testemunho da própria Bíblia de que Iahweh já se fizera conhecido desde outrora, pois já havia se revelado antes de fazê-lo a Moisés. Mais: o que significa a narrativa do capítulo 24 de Josué, no qual ele dá àquele misto de povo um ultimato, a fim de que abandonasse os outros deuses e seguisse unicamente a Iahweh? Nesse sentido, a conclusão necessária a que se deve chegar parece ser a de que, na formação do javismo e na própria identidade cultural do Israel tribal concorreram diversas tradições, oriundas de grupos étnicos distintos e absorvidas em momentos diferentes da história desse pequeno povo chamado Israel. Aqui, é bom destacar, como já foi dito, as marcas que os exílios assírio e babilônico imprimiram na religião e em toda a cultura judaica, além das influências persa, macedônica e, por fim, greco-romana.
Tomando de empréstimo as palavras do escritor da Epístola aos Hebreus – “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e será eternamente” – não é muito difícil perceber que, de fato, Deus sempre foi o mesmo e sempre se revelou ao homem: o que mudou foi a maneira de esse homem, destinatário da revelação, receber e (re-) interpretar aquilo que de si mesmo Deus fazia conhecido e que, para nós, cristãos, veio a culminar no evento Cristo. Não só o entendimento acerca de Deus mudou, mas também o do próprio homem sobre si mesmo. Pudemos conhecer melhor a Deus e a nós mesmos: Cristo nos revelou o Pai e nos mostrou quem somos, pois nele se encontravam a plenitude da divindade e a perfeita humanidade. Em Cristo, percebemos que: não é possível pôr Deus numa caixa e “domesticá-lo”, colocando nele os cabrestos que as nossas limitações humanas nos impõem, restringindo seu agir, demarcando os termos nos quais ele pode atuar (pois Deus é Espírito – sopra onde quer; ninguém sabe de onde vem, nem para onde vai); a graça de Deus não encontra fronteiras e é incompreensível ao homem, sendo loucura e escândalo (aliás, romper com os limites do “racional” e escandalizar-nos é algo peculiar à ação divina); Deus é sempre surpreendente e imprevisível; o homem, seja quem for e onde estiver, é alvo da misericórdia e do amor divinos, bastando que se reconheça doente e pecador. Logo, emoldurar Deus, o alcance do seu agir e consequências, é-nos impossível, ainda que sempre de novo queiramos fazê-lo.
É difícil ao homem, manchado como é pelo pecado, limitado pela finitude, compreender essas verdades sem que elas lhe sejam endereçadas do alto, reveladas pelo Pai das luzes. E parece ter sido isso o que de mais lindo aconteceu por ocasião da Reforma Protestante, qual seja o reencontro de e com a graça de Deus. Lutero disse aos seus contemporâneos coisas inconcebíveis para a tradição religiosa da época, como: “há salvação fora da Igreja, mas não fora de Cristo”, ou ainda: “se o acusador lançar-lhe o pecado na face, acusando-o, responda que sabe que é pecador, mas também diga que você é de Cristo, e que onde Cristo estiver lá você estará, junto dele”. O que na época causou frenesi, hoje nos parece lugar comum. Mas, o que dizer a respeito da tese recente do teólogo (católico, quem diria?) Karl Rahner, a da existência de “cristãos anônimos” e do agir salvífico de Deus divorciado, inclusive, da própria igreja visível? E quanto ao pensamento de M. Amaladoss de que o Cristo universal é muito maior do que o Jesus humano, e de que este limitaria a ação daquele? O que hoje causa perplexidade, enauseia até, amanhã pode ser considerado “ponto pacífico”. Em qualquer caso, o que se percebe são apenas uns lampejos acerca das possíveis manifestações da infinita graça de Deus. Infelizmente, o que tem sido regra entre as várias denominações cristãs é um indigesto sectarismo, e que tem feito cada uma delas parecer um gueto, salvo poucas exceções.
Os diálogos ecumênico e inter-religioso não se apresentam, então, como uma possibilidade, mas como uma necessidade. Senão, olhemos todos os estágios pelos quais passaram a religião judaica e seu filho mais velho, o cristianismo, além de todas as influências que receberam ao longo de milênios de existência. Lembremos, ainda, de Melquisedeque, sacerdote de El Shaday, cuja origem ninguém sabe e que, novamente pelo autor da carta aos Hebreus, teve a sua ordem atribuída ao próprio Cristo; da prostituta cananéia Raabe e de Rute, a estrangeira midianita, que foram colocadas, Deus sabe por que, na genealogia de Davi e de Cristo, descendência de Judá. Ora, a verdade do Evangelho não é patrimônio exclusivo do cristianismo, mas do próprio Deus, que se revela a quem quiser, onde lhe aprouver e como bem lhe agradar – “os pensamentos de Deus são mais altos que os vossos pensamentos, e seus caminhos mais altos que os vossos caminhos”. O nosso juízo, ao contrário do de Deus, é parcial, não isento; viciado, portanto. Por isso mesmo, só ele, o Deus único, pode julgar quem quer que seja: vivos ou mortos, convencionais ou heterodoxos, professos ou não declarados, anônimos ou célebres.
De início, um fato que merece ser salientado – considerando a importância capital da religião judaica no surgimento do cristianismo e a continuidade entre o Primeiro e o Segundo Testamentos – é o de só se poder falar em judaísmo de fato a partir do final do período exílico e início do pós-exílico. Partindo dessa premissa, qual era, então, a religião praticada por Abraão, considerado o pai da fé? E a de Jacó, também chamado Israel? A quem os “filhos de Israel” clamaram quando da escravidão no Egito? Qual seria a prática religiosa de Moisés antes de ter aquela experiência singular com Iahweh e de ser por ele vocacionado? Teve a vivência anterior de Moisés algum reflexo na sua interpretação posterior de Deus? Qual o papel de Jetro, o midianita, sogro de Moisés, no entendimento que este teve acerca de Deus? Ao que parece, a menção da existência de Jetro por si só é um testemunho da própria Bíblia de que Iahweh já se fizera conhecido desde outrora, pois já havia se revelado antes de fazê-lo a Moisés. Mais: o que significa a narrativa do capítulo 24 de Josué, no qual ele dá àquele misto de povo um ultimato, a fim de que abandonasse os outros deuses e seguisse unicamente a Iahweh? Nesse sentido, a conclusão necessária a que se deve chegar parece ser a de que, na formação do javismo e na própria identidade cultural do Israel tribal concorreram diversas tradições, oriundas de grupos étnicos distintos e absorvidas em momentos diferentes da história desse pequeno povo chamado Israel. Aqui, é bom destacar, como já foi dito, as marcas que os exílios assírio e babilônico imprimiram na religião e em toda a cultura judaica, além das influências persa, macedônica e, por fim, greco-romana.
Tomando de empréstimo as palavras do escritor da Epístola aos Hebreus – “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e será eternamente” – não é muito difícil perceber que, de fato, Deus sempre foi o mesmo e sempre se revelou ao homem: o que mudou foi a maneira de esse homem, destinatário da revelação, receber e (re-) interpretar aquilo que de si mesmo Deus fazia conhecido e que, para nós, cristãos, veio a culminar no evento Cristo. Não só o entendimento acerca de Deus mudou, mas também o do próprio homem sobre si mesmo. Pudemos conhecer melhor a Deus e a nós mesmos: Cristo nos revelou o Pai e nos mostrou quem somos, pois nele se encontravam a plenitude da divindade e a perfeita humanidade. Em Cristo, percebemos que: não é possível pôr Deus numa caixa e “domesticá-lo”, colocando nele os cabrestos que as nossas limitações humanas nos impõem, restringindo seu agir, demarcando os termos nos quais ele pode atuar (pois Deus é Espírito – sopra onde quer; ninguém sabe de onde vem, nem para onde vai); a graça de Deus não encontra fronteiras e é incompreensível ao homem, sendo loucura e escândalo (aliás, romper com os limites do “racional” e escandalizar-nos é algo peculiar à ação divina); Deus é sempre surpreendente e imprevisível; o homem, seja quem for e onde estiver, é alvo da misericórdia e do amor divinos, bastando que se reconheça doente e pecador. Logo, emoldurar Deus, o alcance do seu agir e consequências, é-nos impossível, ainda que sempre de novo queiramos fazê-lo.
É difícil ao homem, manchado como é pelo pecado, limitado pela finitude, compreender essas verdades sem que elas lhe sejam endereçadas do alto, reveladas pelo Pai das luzes. E parece ter sido isso o que de mais lindo aconteceu por ocasião da Reforma Protestante, qual seja o reencontro de e com a graça de Deus. Lutero disse aos seus contemporâneos coisas inconcebíveis para a tradição religiosa da época, como: “há salvação fora da Igreja, mas não fora de Cristo”, ou ainda: “se o acusador lançar-lhe o pecado na face, acusando-o, responda que sabe que é pecador, mas também diga que você é de Cristo, e que onde Cristo estiver lá você estará, junto dele”. O que na época causou frenesi, hoje nos parece lugar comum. Mas, o que dizer a respeito da tese recente do teólogo (católico, quem diria?) Karl Rahner, a da existência de “cristãos anônimos” e do agir salvífico de Deus divorciado, inclusive, da própria igreja visível? E quanto ao pensamento de M. Amaladoss de que o Cristo universal é muito maior do que o Jesus humano, e de que este limitaria a ação daquele? O que hoje causa perplexidade, enauseia até, amanhã pode ser considerado “ponto pacífico”. Em qualquer caso, o que se percebe são apenas uns lampejos acerca das possíveis manifestações da infinita graça de Deus. Infelizmente, o que tem sido regra entre as várias denominações cristãs é um indigesto sectarismo, e que tem feito cada uma delas parecer um gueto, salvo poucas exceções.
Os diálogos ecumênico e inter-religioso não se apresentam, então, como uma possibilidade, mas como uma necessidade. Senão, olhemos todos os estágios pelos quais passaram a religião judaica e seu filho mais velho, o cristianismo, além de todas as influências que receberam ao longo de milênios de existência. Lembremos, ainda, de Melquisedeque, sacerdote de El Shaday, cuja origem ninguém sabe e que, novamente pelo autor da carta aos Hebreus, teve a sua ordem atribuída ao próprio Cristo; da prostituta cananéia Raabe e de Rute, a estrangeira midianita, que foram colocadas, Deus sabe por que, na genealogia de Davi e de Cristo, descendência de Judá. Ora, a verdade do Evangelho não é patrimônio exclusivo do cristianismo, mas do próprio Deus, que se revela a quem quiser, onde lhe aprouver e como bem lhe agradar – “os pensamentos de Deus são mais altos que os vossos pensamentos, e seus caminhos mais altos que os vossos caminhos”. O nosso juízo, ao contrário do de Deus, é parcial, não isento; viciado, portanto. Por isso mesmo, só ele, o Deus único, pode julgar quem quer que seja: vivos ou mortos, convencionais ou heterodoxos, professos ou não declarados, anônimos ou célebres.
Pois é meu amigo. Me parece que aquele encontro que tanto falamos está acontecendo. Fico feliz por você, pois esse é na verdade o seu momento.
ResponderExcluirEm diversas oportunidades falamos a respeito de assuntos que careciam de explicações e penso que esse caminho precisa ter um início. Quem sabe mais coisas ainda não poderão ser apresentadas?
Vá enfrente.
João Sergio
Gostaria de dar meus parabéns pela beleza do texto e simplicidade com o qual exprime um assunto tão marcante entre nós Cristãos e Teólogos contemporâneos.
ResponderExcluirHandall, vai nessa tua força que Deus está contigo.
Não tenho a falar, mas meu amigo Handall esta de parabéns com seu blogg,local onde podemos fazer reflexões de importãncia para nosso viver teológico.
ResponderExcluirAtt.:
Mariva.