"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

SOBRE AS ETAPAS PRÉ-CRISTÃS DA REVELAÇÃO DE DEUS NO PRIMEIRO TESTAMENTO

(Handall Fabrício Martins)

Talvez o que mais tenha contribuído para a mudança de mentalidade do povo de Israel com relação ao Deus do Êxodo, do deserto e da Aliança sejam, de fato, as marcas impingidas pelo desterro, que, literalmente, tiraram o chão do povo. Deus precisou permitir que o seu povo escolhido, eleito, amado fosse levado cativo, perdesse a posse de sua terra, a qual lhe foi dada por herança pelo mesmo Deus, segundo promessa e juramento aos antepassados, para que esse mesmo povo compreendesse que Ele, Deus, era muito mais do que aquilo que eles haviam emoldurado em seus corações: um Deus limitado, exclusivo, que habita um lugar específico, longe do qual se está longe do próprio Deus. Eles haviam “encaixotado” Deus, à medida que O tinham por terrível, distante e desvinculado do cotidiano: uma atitude conveniente e até contraditória, que expressava liberdade diante do profano e terror ante o sagrado. A religiosidade se manifestava na exterioridade, indiretamente. Deus era santíssimo, e o homem, impuro. Havia a necessidade de mediação para se relacionar com esse Deus, por meio de rituais e purificações, e sem isso era impossível relacionar-se com Ele.
Numa segunda etapa, Deus continuou sendo o Deus da Aliança, e Israel seu povo escolhido. Porém, a relação com Deus se tornou mais próxima, mais moral; Javé exigia fidelidade, queria atingir o coração, tinha ciúme de seu povo, como o esposo da esposa, e não queria meramente rituais. Interessante que a relação se tornou num “toma lá dá cá”, ou seja: o povo obedecia aos mandamentos e Deus o recompensava. Todavia, contraditoriamente, muitas vezes o ímpio se estabelecia, ao passo que o justo sofria: era uma lacuna que ainda havia na concepção de Deus e que precisava ser preenchida. Todavia, não existia, ainda, a noção de monoteísmo.
Durante e depois do exílio, concebeu-se a idéia do Deus Criador, único (monoteísmo) e desvinculado de qualquer lugar terreno; antes, universal (de todos os povos e terras – toda pessoa, de qualquer lugar, tem valor) e transcendente. Deus passou a ser visto como soberano, que faz o que quer, como quiser e com quem quer que seja, independentemente das atitudes humanas. Ninguém pode se arrogar justo diante dEle: ou o homem se submete ou é exterminado. O ser humano tem sede de Deus, porém também treme ante a sua glória. Sequer Seu nome pode ser pronunciado. A Aliança assume um papel ainda mais moral, individual, mas sua observância ainda determinava a história, ou seja, a lacuna da contradição, muitas vezes existente, entre obediência à Lei e recompensa aqui na terra, persistia. Só com a literatura sapiencial é que se começou a esboçar uma idéia diferente, usando-se os conceitos de soberania e transcendência de Deus. Para justificar aquela lacuna, introduziram-se as noções de sono de Deus, segundo a qual Deus despertaria e faria justiça ao justo e ao ímpio, e de prazo: Deus pode demorar, tardar, mas virá e fará justiça. Ainda não surge a esperança do além-túmulo; logo, a justiça é feita aqui na terra, mas essa justiça não chegava! Não cabia ao homem questionar, mas, tão-somente, calar-se e adorar, aceitar o agir de Deus, pois este não é passível de conhecimento, e a vida não tem um sentido lógico. Houve um distanciamento pedagógico, a fim de estreitar o relacionamento de Deus com seu povo, vivendo a gratuidade, sem parâmetros de méritos e merecimentos. Esboçou-se uma afirmação da profanidade das coisas e dos papéis cultual e histórico do ser humano no cosmos.
À par dos aspectos positivos existentes desde o início da trajetória de Abraão até o estabelecimento do judaísmo, alguns pontos negativos saltam aos olhos, por terem seu correspondente na atualidade. São eles: a) a mera religiosidade, legalismo, ritualismo e superstição; b) a crença de que se pode “barganhar” com Deus, cumulando, inclusive, créditos; c) idolatria dos sacerdotes; d) moralidade baseada em prescrições e proibições do tipo: “isso pode, aquilo não pode”; e) apropriação de Deus, arrogando-se o conhecimento dEle; f) fundamentalismo, no sentido pejorativo de se valorizar mais os dogmas do que a prática, desrespeitando a liberdade do outro; isso se manifesta por: proselitismo; divisão do mundo naqueles que são “dos nossos” e os que não são; uso ideológico e político da religião (aqui, os fins justificam os meios, inclusive os desumanos, como coação e violência); justificação teológica de diversas barbáries; justificação moral da história; g) fatalismo com relação à religião; h) desconfiança de todo propósito religioso; i) crença de que a religião nada tem a ver com a sociedade, mas só com a moral em nível privado; isso acarreta: a idéia de que as desigualdades sociais e todos os demais acontecimentos expressam a vontade divina; reforço da piedade individual, em detrimento da comunhão.
Agora, com relação à evolução positiva da teologia judaica e a herança dela para o cristianismo, podemos citar: a) Deus, o absoluto, é amor, pois só o amor desinstala, nos tira das nossas seguranças, e nos leva ao desconhecido, para onde nunca fomos, para fazer algo que não sabemos, mas que Deus sabe; b) o ser humano é colaborador de Deus, ainda que indireto, nos desígnios que Ele realiza na história, logo, somos o novo povo de Deus, o povo da nova e eterna aliança; isso tanto mais é verdade se olharmos o exemplo de Cristo, que recapitulou a história por meio de sua encarnação, vida, morte e ressurreição, inaugurando nova criação e sendo tudo em todos; c) transcendência, universalidade e unicidade de Deus, associadas: à fragilidade do homem; sua dependência de Deus; a gratuidade da salvação que Ele nos ofertou, independentemente de méritos, baseada na misericórdia divina e na nossa contrapartida (correspondente à fé e a entrega); à personalização e mediação do relacionamento com Deus, por meio de Cristo; à adoração.
Pode, à primeira vista, parecer que os aspectos negativos se apresentam como muito mais patentes e efetivos, haja vista tanta aberração e hipocrisia que se tem visto. Aliás, o dedo do homem, sempre querendo dar “uma ajudinha” pra Deus, tem sido o pior aspecto do cristianismo, revelando sua pior faceta. Entretanto, chegamos à plenitude da revelação de Deus na história, o Cristo, e, ainda que não compreendamos totalmente os desígnios desse Deus, sabemos que tudo reside em Jesus, porque dele, por ele e pra ele são todas as coisas. O Cristo representa para nós, cristãos, a própria experiência com Deus, aumentando-nos a fé, realizando-a e radicalizando-a. Cristo é o foco, em cujo centro está o próprio Deus, o Pai, que subverte a ordem “natural” das coisas e liberta, segundo o Espírito do mesmo Deus.
Desta forma, não há oposição entre o Primeiro e o Segundo Testamentos; ambos fazem parte de um movimento único. Jesus é a figura humana acessível e central, ao mesmo tempo em que é divino; não é uma revelação a mais de Deus, mas é o próprio Deus revelado. Infelizmente, os judeus não entenderam dessa forma, pois para eles, aceitar Jesus como Deus, seria abrir mão do monoteísmo que eles aperfeiçoaram a duras penas.


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