"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

domingo, 20 de junho de 2010

A TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA: ANÁLISE DE CONJUNTURA

Handall Fabrício Martins


INTRODUÇÃO


Segundo Otto Maduro,

[...] a memória histórica do próprio passado de um povo é um dos elementos-chave na capacidade desse povo para conhecer sua própria situação, para compreendê-la e apoderar-se dela, para conhecer suas próprias limitações e possibilidades, para compreender seus próprios recursos e alternativas, e, portanto, para poder participar decisivamente na construção de seu próprio futuro [...] (1981, p. 9, grifo do autor).


Mutatis mutandis (ainda segundo Otto Maduro), o mesmo acontece com a memória histórica da Igreja. E, nesse processo todo, o papel de quem escreve ou reconstrói a história do cristianismo é decisivo, pois, de fato, acaba sendo responsável por construir ou reescrever essa mesma história e, assim, termina por influenciar a própria memória histórica do povo de Deus.

Dessa primeira exposição conclui-se que escrever história (e história da Igreja e da teologia) não é um trabalho imparcial nem inocente, pois escrever (e interpretar) história é algo que se faz em e a partir de: um dado momento histórico; de uma posição social específica em conflito com outras; de um projeto histórico em conflito com outros; e de uma corrente de pensamento oposta a outras.

Ou seja, escrever história é uma tarefa contextual, situada histórica, social, política, intelectual e objetivamente, fruto de como se percebe a realidade presente e resultado da perspectiva contemporânea específica do historiador e dos condicionamentos de seu próprio tempo.

Em se tratando de história eclesiástica ou do pensamento cristão, é também uma tarefa situada tanto dentro quanto fora da Igreja. Desse modo, para ser dono da história futura, é preciso conhecer a história passada. E, por dedução, para estudarmos especificamente a história da América Latina, bem como da Igreja e da teologia latino-americanas, precisamos levar em conta os mesmos fatores.

Ora, se escrever a história é algo situado, igualmente o é o objeto de estudo dessa história. Logo, consideram-se os mesmos fatores acima mencionados. Assim, a teologia – objeto de estudo da história da teologia – é algo também situado. Mais: fazer história da teologia é também fazer teologia; e história da teologia é (como possibilidade objetiva) “[...] a intenção de recuperar o passado de uma reflexão iluminada pela fé no seio da história [...]” (MADURO, 1981, p. 20).



HIPÓTESES PARA UMA HISTÓRIA DA TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA (1492-1980) SEGUNDO PERIODIZAÇÃO PROPOSTA POR ENRIQUE DUSSEL


Como já dito acima, o trabalho de reconstrução da história da teologia na América Latina é também interpretativo, é fazer teologia. Isso quer dizer que não se resume a uma coleção objetiva de informações, pois até uma “simples” seleção dos dados que se julguem mais importantes sempre vai ser uma tarefa subjetiva. Por outro lado, é possível escrever a história da teologia na América Latina a partir da própria teologia latino-americana, de seu desenvolvimento interno como um todo abstrato, auto-suficiente. Seria a análise de um processo evolutivo lógico dentro do horizonte da reflexão teológica.

Entretanto, esse todo teológico abstrato está inserido na totalidade da existência cristã e também da não-cristã no contexto histórico da cristandade latino-americana. Metodologicamente, então, faz-se necessário situar a teologia na totalidade na qual ela – a teologia – cumpre o seu papel, ou seja, passarmos de uma simples descrição abstrata da teologia como tal para o nível concreto da teologia condicionada pelo não-teológico (o real, que interage dialeticamente com a teologia). Assim, devemos considerar que “[...] a teologia parte da fé existencial cristã, cotidiana, popular e profética” (DUSSEL, 1981, p. 165).



A TEOLOGIA COMO RESPALDO E COMO DENÚNCIA DIANTE DA CONQUISTA E DA EVANGELIZAÇÃO


O “descobrimento” da América causou uma revolução geopolítica sem precedentes na história mundial. O Mediterrâneo Oriental deixou de ser o centro da história, sendo substituído pelo Oceano Atlântico. Apenas para exemplificar a dimensão das mudanças que tal deslocamento provocou: o ouro levado da América para a Europa foi o que formou, basicamente, o capital acumulado que serviria para financiar a Revolução Industrial do século XVIII.

Entretanto, esse “descobrimento” seria muito melhor definido em termos de conquista e invasão. Descobrimento, de fato, só aconteceu para os europeus, e o uso dessa terminologia até os dias atuais é fruto de um insuportável etnocentrismo europeu, como se a história da América houvesse iniciado apenas após a chegada deles ao continente, além de transmitir a falsa idéia de uma entrada pacífica quando, na verdade, aconteceu um genocídio.

Desde 1493, a conquista da América possuía “justificação” teórica: a Bula Intercoetera, expedida pelo papa Alexandre VI em favor dos reis católicos da Espanha, que concedia a estes a permissão para evangelizar e sujeitar a América. Isso significava que o senhorio da Espanha sobre os novos reinos estava baseado na obrigação, firmada com a Santa Sé, de catequizar os índios segundo a fé católica. Era uma aliança político-religiosa.

Aqui, não é possível ignorar o peso que a Reforma Protestante teve nesse momento, pois a Igreja Católica, diante da grande perda de fiéis, veio buscar na América, através da “evangelização”, a adesão dos nativos à fé católica. Era o projeto de uma cristandade colonial católica visto que, na Europa, a cristandade havia ruído. O papa transferia aos reis de Portugal e Espanha a tarefa de constituir, além-mar, impérios católicos. Na prática, isso se deu através do regime de “padroado”.

Essa era a ideologia político-religiosa da conquista, cujo sentido encoberto era a dominação e a escravidão dos índios. Morte, roubo e tortura – conseqüências reais da práxis conquistadora – eram disfarçados pela interpretação falsa e ideológica: a evangelização. Na consciência do conquistador, as bulas papais tinham o mesmo papel ideológico da doutrina norte-americana do “Destino Manifesto”, o “american way of life”.

A ideologia da conquista era elevada ao status de teologia. Para Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573), a conquista da América e a guerra contra os índios eram consideradas justas – ou melhor, eram justificáveis e justificadas –, pois eram realizadas em nome de um suposto direito natural e divino e atribuídas à rebeldia dos “menos dotados” que, nascidos para servir, recusaram o domínio de seus senhores. Quando não se podia sujeitar, “civilizar” os índios por outros meios, a guerra contra eles era tida como justa.

Cabe, aqui, um pequeno parêntese. Os cristãos protestantes, ao lerem ou ouvirem este relato, poderiam pensar que apenas os colonizadores espanhóis e portugueses agiram movidos por tal “teologia” e, claro, por serem católicos. Entretanto, poucos anos depois, ingleses, holandeses, franceses – protestantes – também imbuídos de uma ideologia político-religiosa expansionista e indignados pelo fato de o papa ter dividido o mundo por descobrir entre portugueses e espanhóis (Tratado de Tordesilhas), lançaram-se ao Atlântico em direção à América.

Nesse cenário desolador, surgem personagens emblemáticos, marcantes por sua luta em defesa dos índios. Aqui, podemos citar Bartolomeu de Las Casas (1474-1566) e Bernardino de Sahagún (morto a 1590), no México, e Josué de Acosta (1539-1600), no Peru. Estes não apenas criticaram a ideologia da época como realizaram ações concretas em defesa dos índios. Também deixaram como legado vários escritos, nos quais denunciam a situação dos nativos americanos e condenam teologicamente a humilhação que lhes foi imposta.

Las Casas, por exemplo, citando Agostinho a propósito do texto de Mateus 25.31-46, pergunta-se: “se há de ir para o inferno aquele a quem Cristo disser: ‘estive nu e não me vestiste’, qual será o lugar daquele a quem Cristo disser: ‘estava vestido e me desnudaste’?”. A práxis da conquista da América não era vista como algo natural por todos, indistintamente. Deus sempre levantou vozes proféticas nos tempos de angústia e aflição de seus pequeninos.



A TEOLOGIA NA CRISTANDADE COLONIAL (1553-1808)


Neste período foram fundadas várias universidades, inclusive faculdades de teologia. Todavia, apesar de seu caráter acadêmico, se tomarmos o conteúdo da teologia produzida nessa época em relação com a realidade histórica de seu tempo, descobriremos seus condicionamentos ideológicos. Dizia-se, por exemplo, que o rei não tinha direito de dominar os índios, mas admitia-se que o papa tinha um poder indireto sobre os índios com a finalidade de evangelizá-los e que esse poder podia ser outorgado aos reis. Assim, foi justo acabar com o domínio do rei asteca Montezuma, pois os bárbaros astecas poderiam ser civilizados e cristianizados. Falava-se, também, que os índios não podiam pagar tributos, mas admitia-se o sistema de encomendas (troca de trabalho por catequese).

Verifica-se, então, que a teologia da cristandade colonial foi, na melhor das hipóteses, reformista, pois ocultava a contradição e a injustiça que o grupo de Las Casas criticara e condenara. Essa teologia imitou a segunda escolástica e, por isso, foi duplamente ideológica, pois encobria tanto as injustiças praticadas na Europa como as que se repetiam, com muito mais vigor, na América. Era apenas mais uma maneira de se justificar o chamado “pacto colonial”.



A TEOLOGIA PRÁTICO-POLÍTICA DIANTE DA EMANCIPAÇÃO NEOCOLONIAL (A PARTIR DE 1808)


Neste período, a influência do Iluminismo europeu e dos ideais republicanos se fez sentir entre os domínios de Portugal e Espanha na América. As novas teologias (ou ideologias) oligárquicas, fruto de novas interpretações da teologia tradicional, passaram a questionar o sistema sócio-político e religioso da época, almejando a independência, a emancipação e a autonomia em relação às metrópoles. O regime do “padroado”, é claro, também foi posto em xeque, vindo a desaparecer à medida que a república passa a ser adotada como regime político das colônias emancipadas e se constituem os chamados “estados laicos”. A hegemonia econômica de Portugal e Espanha na América Latina passa a ser substituída, aos poucos, pelo domínio inglês. A partir de 1870, começam a surgir os Estados liberais oligárquicos na América Latina. No Brasil, isso ocorreu a partir de 1889 com a proclamação da república sob o viés militar-positivista. Segundo Guimarães,

[...] França e Inglaterra disputavam ferrenhamente o mercado mundial. Com as guerras napoleônicas e a invasão da Península Ibérica por Napoleão, houve a fragilização das duas monarquias católicas, acelerando assim o processo de independência por parte das colônias ibéricas estimuladas pela Inglaterra que assumiu um poder econômico hegemônico no mercado mundial. As colônias na América Latina começaram a conquistar a sua independência e, sem adotar outras alternativas, ficaram atreladas ao poderio inglês. A luta pela independência colocou em cheque a cristandade colonial. Embora a Igreja apoiasse oficialmente os colonizadores, não deixou de ter líderes que apoiassem as guerras de independência ou os movimentos emancipacionistas.


Passou-se, então, a se formular a “justificação” teológico-ideológica das guerras de reconquista e, mais uma vez, como no primeiro momento da colonização, fora dos ambientes acadêmicos. A teologia não é mais aprovada pelo estado (e nem precisa sê-lo) e a Inquisição não mais representa uma ameaça. Trata-se de um novo momento prático e político de reflexão a partir de uma fé comprometida num processo de libertação, apesar de suas limitações, como a de não incluir no processo de emancipação as classes mais oprimidas e, por isso mesmo, rapidamente passou a justificar o novo status quo, perdendo seu caráter revolucionário.

Conforme nos informa Israel Belo de Azevedo, neste período, o que se evidencia é a falta de uma teologia lascasiana mais profunda e a ausência de uma fé profética. O maior problema da época, por exemplo – a escravidão negra –, não recebeu dos pensadores cristãos a atenção que merecia, certamente, porque mesmo os religiosos, inclusive protestantes, possuíam escravos. No Brasil, a corrente abolicionista defendida pelo órgão presbiteriano “Imprensa Evangélica” sofreu forte oposição, inclusive, de missionários do sul dos Estados Unidos, alguns vindos pra cá justamente por causa da escravidão.

Uma observação importante a se fazer aqui é a respeito de na América Espanhola as guerras de reconquista terem sido uma constante a partir de aproximadamente 1760. Isso se deve ao fato inequívoco de que nas regiões colonizadas pela Espanha a violência utilizada no empreendimento colonizador e a espoliação dos nativos pelos europeus terem atingido níveis muito mais cruéis e desumanos, gerando muito mais revolta e sentimento nacionalista, o que foi canalizado para uma ideologia da reconquista, utilizando, igualmente, a força, e com muito derramamento de sangue.



A TEOLOGIA NEOCOLONIAL NA DEFENSIVA (ATÉ 1930)


Este período é marcado pela transição de uma teologia mais crítica, de combate à dominação européia, para uma teologia tradicional e conservadora, quase sempre atrasada em relação aos acontecimentos. No entanto, alguns aspectos podem e merecem ser ressaltados, como a crítica ao positivismo, sobretudo o francês, e a irrupção das elites do liberalismo – político-econômico – neocolonial, anticlerical (embora moralista cristão). A teologia católica oficial permanece numa atitude conservadora e de desconfiança em relação à cultura burguesa e tecnológica incipiente, inglesa e norte-americana, de tendência monopolista.

Outra marca deste período é a consolidação de uma nova espécie de pacto colonial, no qual a posição antes ocupada por Portugal e Espanha e, depois, pela Inglaterra passa a ser ocupada pelos Estados Unidos da América do Norte. Além disso, teve início uma intensa polarização entre o catolicismo dominante e o protestantismo crescente devido à imigração e aos empreendimentos missionários.

Segundo Dussel (1985, p. 175), “[...] teologicamente, até a obra de Rubem Alves e Míguez Bonino, na atualidade, não havia nenhum movimento [protestante] que merecesse ser considerado [sic]”.



A TEOLOGIA DA “NOVA CRISTANDADE” (1930-1959)


Nesta época acontece a transição de uma teologia tradicional, fruto da mentalidade agrária, para uma teologia desenvolvimentista, reformista, que assume o ethos burguês na posição trágica de um capitalismo dependente. Isso porque a maioria das nações latino-americanas sequer alcança a condição de capitalista, mas unicamente de novas colônias de exploração, fornecedoras de matérias-primas para as potências industriais hegemônicas, sobretudo os EUA. Sequer há burguesias nacionais propriamente ditas.

Como resposta à Grande Crise de 1929, inicia-se, em alguns países (como México, Brasil, Argentina, Uruguai e Chile) uma política de industrialização para substituição de importações e o êxodo rural, processo que se intensificou com a Segunda Guerra Mundial, dando ensejo às burguesias industriais nacionais latino-americanas. Ao mesmo tempo, surgem movimentos sociais populares, além de ressurgirem, com força, as classes militares. Estas, primeiramente, saem em defesa dos latifundiários e, depois, agem em nome de uma ambígua unidade entre as burguesias nacionais e as classes trabalhadoras. Seguindo a linha da “guerra fria” e do embate entre russos e norte-americanos, o inimigo dos cristãos – protestantes e católicos – era o comunismo.

Na prática, isso põe fim ao liberalismo político-econômico militante, positivista e anticlerical (ainda que moralizante cristão). Em troca, inicia-se uma abertura que até buscará o apoio do catolicismo tradicional, conservador, o que se traduzirá na organização de gigantescos congressos eucarísticos e, sobretudo, na fundação da Ação Católica e de outras instituições semelhantes, partindo da formulação teórica da teologia da “nova cristandade”.

O catolicismo, então, abandona lentamente suas teses, primeiramente imperiais, depois monárquicas e feudais, abrindo-se, aos poucos, para a aceitação e, depois, para a justificação, apaixonada até, da democracia liberal e, às ocultas, do regime burguês capitalista, por meio de teologias (ideologias) reformistas de ocultação da situação sócio-política.

A partir de 1929, a Ação Católica começa a ser institucionalizada em toda a América Latina. Esta teologia fazia clara distinção entre o “temporal” (mundano, material e político) do “espiritual”: o primeiro cabia aos leigos e o segundo, aos sacerdotes. Os cristãos eram incentivados a militar no cumprimento do “apostolado”, o qual era definido como uma participação no apostolado hierárquico da Igreja. Os leigos podiam atuar em partidos políticos, sindicatos e escolas de “inspiração cristã”. A tarefa era transformar as nações latino-americanas em nações católicas. O reino de Cristo exigia que se reconhecesse o catolicismo como oficial e majoritário. A Igreja queria recuperar o poder perdido e, para tanto, contava com os leigos militantes.

Só em 1955 é que podemos falar, de fato, de uma “teologia desenvolvimentista”, momento em que alguns cristãos assumem decididamente o projeto burguês. Até então, só se podia falar de “teologia reformista”, de renovação de certa interpretação da realidade, baseada na terceira escolástica. Não existia ainda a consciência do problema de classes e da dependência que a América Latina sofria debaixo do poderio político, econômico e militar dos EUA.

Os teólogos católicos passaram a se formar não somente na Itália. Os mais progressistas iam à França. A “doutrina social da Igreja” permitirá a realização de experiências com grupos operários e marginalizados. É nessa época que florescem as faculdades ou centros teológicos católicos em diversas cidades latino-americanas. A práxis eclesial começa a crescer. A Ação Católica permite uma tímida “luta social”, inclusive, a fim de barrar os anseios sociais de se construir na América Latina uma alternativa com características tipicamente socialistas.

É criado o CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano), que coordenará os movimentos apostólicos e de onde sairão os teólogos militantes do próximo período. Surge a Confederação Latino-americana de Religiosos (CLAR) e, pouco a pouco, tem início a organização de vários tipos de movimentos, inclusive de ação católica, sindicatos, faculdades de teologia, seminários, etc. São lançadas as bases do movimento bíblico: protestante, através de suas sociedades bíblicas; católico, por meio de seminários, revistas e novas edições da Bíblia.

Quanto à produção teológica, pode-se afirmar que é imitação e aplicação da teologia importada do hemisfério norte, sem um conhecimento histórico e real da situação latino-americana.


(continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário