"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

segunda-feira, 28 de junho de 2010

A TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA: ANÁLISE DE CONJUNTURA

Handall Fabrício Martins

(continuação)


A TEOLOGIA LATINO-AMERICANA NO PERÍODO DE 1959-1980

A teologia latino-americana sempre se ocupou muito mais com as realidades “seculares” e contextuais – como cultura, sexualidade, história e política – do que com temas “religiosos” e “espirituais” (por exemplo, as doutrinas de Deus, da criação, da graça, do pecado e da escatologia). Neste período, a teologia católica avançou, chegando mesmo a um nível de autonomia que mereceu do Vaticano a censura a um de seus teólogos. Já na esfera protestante, só a partir dos anos de 1960 é que houve alguma efervescência, caminhando numa direção que depois chegaria a ser a bandeira de boa parte dos teólogos católicos.


A teologia da libertação

Esta teologia, nascida nos anos de 1960 e aprimorada na década seguinte, foi a maior contribuição – para dentro e para fora – do pensamento cristão latino-americano. Essa teologia pôs fim à teologia da “nova cristandade”, estando ligada à conscientização da situação de subdesenvolvimento do continente latino-americano, aos movimentos de militância política anteriores, à nova orientação da Igreja Católica surgida no Vaticano II e à nova teologia européia (sobretudo a do reformado Jürgen Moltmann). Arquitetada em 1968, teve como seus pioneiros, entre outros, os pensadores protestantes Richard Shaull, Rubem Alves, Júlio de Santa Ana, Emílio Castro e José Miguez Bonino e os católicos Gustavo Gutiérrez, Juan Luís Segundo e Segundo Galilea.

Segundo Dussel, a teologia da libertação não acontece por geração espontânea. Ela tem, sim, uma história recente. Todavia, se a considerarmos em longo prazo, ela remonta até Bartolomeu de Las Casas, no século XVI. A partir dos movimentos da juventude, da Ação Católica especializada (JUC, JEC, JOC, JAC, CEBs, MEB), surgidos no último período da “nova cristandade”, o leigo descobre sua responsabilidade política. Oriundos dos setores médios, do operariado e camponeses dirigentes, esses grupos se radicalizam em sua oposição à burguesia industrial e às oligarquias donas de terras. Passam do reformismo à revolução, adotando um anticomunismo de estrema esquerda, chegando a cair, às vezes, num romantismo devido à falta de realismo político. Diante do pessimismo com relação ao processo de transformação, tentam fazer tudo de uma só vez.

Mas a teologia da libertação não é a expressão de grupos guerrilheiros ou de extrema esquerda, não. Antes, ela significa uma reflexão fundamentada numa realidade muito mais profunda, frutífera, e que cresce na perseguição e no martírio. Sobretudo, essa reflexão cresce no meio do povo que se organiza e se mobiliza. A teologia da libertação surgiu a partir da reflexão da fé confrontada com a injustiça praticada contra os pobres. É freqüente a expressão “empobrecidos pelo sistema”. Articula-se uma luta contra a pobreza injustamente criada e imposta. A teologia da libertação verifica que não basta elaborar projetos de assistencialismo. Estes podem ajudar indivíduos isoladamente, mas o pobre acaba sendo transformado em objeto de caridade. A prática do assistencialismo gera dependência.

Também o “reformismo” não é o bastante. É insuficiente melhorar a situação dos pobres, preservando a estrutura injusta da sociedade. Em 1964, e.g., o Brasil era a 47.ª economia do mundo. Em 1984, tornara-se a 8.ª. Mas não houve a participação do povo. Este, aliás, ficou ainda mais pobre. O progresso não beneficiou todos. A sociedade brasileira continua uma das mais desiguais do planeta. O pobre precisa ser considerado sujeito de sua própria libertação. Segundo Leonardo e Clodovis Boff, no processo de libertação, os oprimidos se unem, entram num curso de conscientização, conhecem as causas de sua opressão e organizam seus movimentos, agindo de forma articulada.

O Método da teologia da libertação possui três momentos fundamentais: ver (analítico), julgar (teológico) e agir (pastoral). Três mediações principais são imprescindíveis: a sócio-política, que procura entender as causas da opressão; a hermenêutica, que procura descobrir qual é o plano de Deus; a prática, que procura superar a opressão de acordo com a vontade de Deus. A participação política ocorre a partir da “base”, através da participação em movimentos populares. A filosofia marxista é sempre tratada a partir de e em função dos pobres. Ela é utilizada de modo puramente “instrumental”.

Segundo a periodização proposta por Enrique Dussel, o surgimento da teologia da libertação possui quatro momentos bem distintos. Vejamos cada um deles:


1) de 1959-1968 [do anúncio e realização do Concílio Vaticano II (1962-1965) à II Conferência Geral do CELAM (1968)]: tempo de preparação e de posição eminentemente desenvolvimentista. Neste período, a teologia progressista se apóia no mito do desenvolvimento dos países subdesenvolvidos, mercê da ajuda técnica e do investimento das potências do “centro”, sobretudo EUA e Europa.

Essa “teologia do desenvolvimento” é fruto da reflexão de uma fé que propõe reformas sociais parciais. Possui uma espiritualidade “funcional”. Significa “encarnar-se” no mundo, sem que se percebam os conflitos que nele ocorrem. Mas o “mundo” pertence ao capitalismo burguês, e os conflitos não são descobertos porque o cristão foi doutrinado na cultura burguesa eclesial, a fim de “cumprir o seu dever” e “dar bom exemplo”.

O Concílio Vaticano II acontece num contexto em que os EUA estão expandindo sua hegemonia. A participação teológica latino-americana no concílio é praticamente nula, devido à imaturidade da reflexão teológica presente no continente desde o início do século. Todavia, a II Conferência Geral do CELAM, em Medellín, em 1968, marca o fim do período de preparação. O vocabulário é desenvolvimentista (“promoção humana”, “desenvolvimento”), mas, também, de libertação (“tensões internacionais e neocolonialismo”, “distorção crescente do comércio internacional”, “desvio de capitais”, “monopólios internacionais ou imperialismo do dinheiro”). Foi resultado de um longo processo.

Desde o final da Segunda Grande Guerra, teólogos latino-americanos foram estudar na Europa e nos EUA. Inicialmente, apenas “repetiam”, reproduziam o que aprendiam. Aos poucos, porém, começaram a descrever a realidade, ampliando seu discurso à realidade latino-americana e tomando consciência da problemática da pobreza e injustiça de que o continente era vítima. A sociologia religiosa dá lugar à sociologia geral e pastoral. Teologicamente, este período desenvolvimentista chega ao ápice num congresso ocorrido no México, entre 24 e 28 de setembro de 1969, com o tema “Fé e desenvolvimento”.

Entre os teólogos latino-americanos deste primeiro período, temos Juan Luís Segundo e José Comblin. Este último escreveu a primeira crítica autorizada à teologia da “nova cristandade”. Como transição para o período posterior, chegou-se a falar de “teologia da revolução”, tema sugerido nos círculos ecumênicos e nos quais participaram teólogos latino-americanos.


2) de 1968-1972: período de formulação da teologia da libertação. As reuniões para estudos de religiosos, bispos e leigos multiplicam-se. O CELAM organiza criticamente suas regras. Os movimentos de “base” também crescem, bem como os grupos sacerdotais. Os universitários se engajam politicamente, adotando uma linha socialista.

A partir dessa realidade, produz-se uma ruptura epistemológica. A teoria sócio-econômica do desenvolvimento ou da modernização transforma-se na teoria da libertação, através do diagnóstico que propõe a “teoria da dependência”. A primeira declarara que o progresso é linear e inevitável. Com a aplicação de capital na economia, a produção aumenta e reverte em benefício de todos. A transferência tecnológica abriria novos mercados e o bolo econômico seria repartido. Já a segunda conclui que é impossível desenvolver os países subdesenvolvidos, visto que seu subdesenvolvimento decorre de serem espoliados sistematicamente pelos “países do centro”. Para Leonardo e Clodovis Boff, o desenvolvimento dos países ricos e o subdesenvolvimento dos países pobres são cara e coroa de uma única e mesma moeda. A pobreza do Terceiro Mundo é o preço pago para que o Primeiro Mundo desfrute da abundância. Diante disso, a teologia assume, então, a experiência e o anseio das “bases” e as hipóteses das ciências sociais. Nasce a “teologia da libertação”.

Gustavo Gutiérrez, peruano, lança a questão: “teologia do desenvolvimento ou teologia da libertação?”. O mesmo é proposto pelos protestantes Richard Shaull (norte-americano, em nível ecumênico) e Rubem Alves. As teologias da secularização, da revolução e da “morte de Deus” são criticadas. Hugo Assmann faz se notarem as diferenças entre a teologia da libertação e a teologia política e da esperança.

O movimento ganha consistência. Inicia-se o apoio histórico e filosófico à incipiente teologia latino-americana da libertação. Teologicamente, é no “Encuentro de El Escorial”, na Espanha, em julho de 1972, que acontece a primeira reunião na qual podem dialogar os participantes do movimento. O protestante José Míguez Bonino, com sua larga experiência ecumênica, também marca presença no evento. Surgem várias publicações nos diversos países latino-americanos, alinhando-se à nova teologia.

Marcante, também, é o pronunciamento do secretário do CELAM, Eduardo Pironio, em 1971, em Nova York: “nossa missão, como a de Cristo, consiste em dar a boa nova aos pobres, proclamar a libertação aos oprimidos” (cf. Is 61.1-3). A “luta” não é o que todos querem; ela é fruto da opressão.


3) o período cujo início foi marcado pela Assembléia Geral do CELAM, em 1972, em Sucre, na Bolívia (evento que marcou o começo da ofensiva conservadora da Igreja Católica na América Latina) – o “cativeiro” e o “exílio” como momentos de libertação.

Esse foi um tempo de amadurecimento da consciência acerca do processo de libertação. A teologia da libertação inspira-se nas façanhas bíblicas de libertação, como a narrativa do êxodo dos hebreus. E é na dura realidade da práxis que os teólogos da libertação descobrem o sentido do tema do “cativeiro” e do “exílio”, pois quem escreve sobre isso teve que abandonar de fato sua pátria, escrevendo no exílio real, concreto. Não é difícil entender por que esse tema é sugerido por teólogos brasileiros, como Leonardo Boff, que escreve, em 1972, “Jesus Cristo, libertador”. O Cristo libertador é o “servo sofredor”. Como veremos, as reivindicações por transformações sócio-econômicas desencadearam uma política repressiva e cerceadora das liberdades na América Latina, proposta e patrocinada pelos EEUU: as ditaduras militares.

Face ao fracasso da “Aliança para o Progresso”, os EUA mudam de política com relação à América Latina. Golpes militares são conduzidos teórica e praticamente por mentores como o General Golbery do Couto e Silva, no Brasil, criador da “doutrina integral de segurança nacional”, segundo a qual o Brasil se alinharia ao bloco ocidental, sob a liderança dos Estados Unidos (EUA), e em oposição ao bloco comunista liderado pela União Soviética (URSS). Propugnava que, para promover o desenvolvimento nacional, seria necessária, em certa medida, a centralização do poder com a “…supressão de alguns valores definidores da ordem democrática.” Ou seja, segundo sua tese, para desenvolver o Brasil de seu atraso tecnológico, era necessária um regime de força alinhado com os Estados Unidos.

Em 1969, o chamado “informe Rockfeller” reitera a linha dura da nova política adotada pelos EUA com relação à América Latina, ao indicar que a Igreja estava se tornando uma “força aplicada à mudança, inclusive revolucionária, se necessário”, e que, pela “segurança do hemisfério ocidental”, as forças militares latino-americanas eram a força essencial para uma mudança social positiva, a fim de se conservarem a ordem e os valores da “civilização ocidental cristã”. Em 1972, a pedido do Departamento de Estado dos EUA, o Rand Corporation faz uma constatação idêntica. É fundado o Instituto de Religião e Democracia (IRD), a fim de deflagrar guerra contra a teologia da libertação.

As potências do “centro” já não falam de liberdade nem de democracia, mas de “ordem”, “segurança” e “progresso”. Os teólogos reformistas criticam a teologia da libertação, argumentando que teologia da libertação é aliada da “extrema esquerda” e dos grupos guerrilheiros (o que é falso), sendo logo criticada como sendo o apoio estratégico marxista-cristão desses grupos violentos. Em Sucre, em 1972, o CELAM decide pelo fechamento dos institutos de pastoral de Quito, do de liturgia de Medellín e do de catequese de Manisales, para se organizar outro com a duração de um ano letivo, também em Medellín, na Colômbia, com atenção especial “às exageradas teorias da teologia da libertação”, segundo as palavras de Boaventura Kloppenburg, notório opositor do novo movimento teológico e nomeado para organizar e dirigir o novel instituto.

Apesar das vicissitudes, a teologia da libertação amadurece na perseguição, aumentando o número de adeptos. Expulsos de seus locais de trabalho, perseguidos, às vezes, pela sua própria igreja, crescem em número e em qualidade. A teologia da libertação assume cada vez mais seriamente sua inserção nos movimentos populares de libertação. O “I Encuentro Latino-americano de Teología”, realizado no México, em 1975, marca um ponto alto no caminho da nova etapa da teologia da libertação, além do claro confronto de posições que, neste caso, são predominantemente “funcionalistas” norte-americanas, e que novamente ignoram nossa realidade latino-americana concreta. Por outro lado, a reunião de “Theology in the Americas”, realizada em Detroit na semana seguinte, proporcionou um primeiro encontro global dos teólogos latino-americanos presentes com teólogos norte-americanos representantes dos movimentos da “black theology”, do feminismo, dos chicanos, etc., e de outros teólogos críticos do sistema. A teologia da libertação descobre o “tempo político” do cativeiro. Mas, para não se transformar em reformista, não poderia perder de vista o projeto de libertação.


4) o último momento da análise de Dussel abarcou três fatos e, segundo ele, deixou a situação em aberto: a ascensão de Jimmy Carter ao poder nos EUA, a política da Comissão Trilateral e a 3.ª Conferência do CELAM, em Puebla de Los Angeles, no México, em 1979.

Começa uma nova fase no desenvolvimento da teologia latino-americana, o que se deu num contexto bem delimitado. Este foi o período do recrudescimento das ditaduras instauradas com base na doutrina da segurança nacional, período em que o capitalismo também passou por grave crise, devido à política adotada pelos países da OPEP, o que gerou um déficit na oferta do petróleo e o aumento do preço do barril a níveis estratosféricos. Jimmy Carter, presidente do EEUU, dá novos contornos à política da Comissão Trilateral, quando se começou a falar de “abertura democrática dos países da América Latina” e de luta em favor dos direitos humanos.

Teologicamente, segundo Dussel, esta fase teve como pano de fundo o que poderia ser chamado de “a batalha de Puebla”. Confiou-se ao CELAM a organização da III Conferência Geral. O momento central do evento foi a polêmica suscitada pelo Documento de Consulta. Talvez essa tenha sido a mais importante disputa teológica da história da América Latina. Mas os teólogos da libertação reagiram clara e coerentemente. Sua presença foi firme e eclesiasticamente sensível. Houve, também, importantes movimentos de apoio, inclusive ecumênicos, cujo ápice foi o “IV Encontro de São Paulo”, que contou com mais de 160 participantes da América Latina, África e Ásia, além de alguns europeus e norte-americanos. Esse encontrou tratou em especial da questão da Igreja popular. A partir daqui, a polarização da reflexão teológica no continente tornou-se evidente. De qualquer modo, a teologia da libertação passou a ter um grande crescimento em todas as partes do mundo.

Importante aqui, também, é salientar o diálogo que passou a existir entre a teologia da libertação e as teologias “da esperança” (Moltmann) e “da secularização” (Cox). Conseguiu-se perceber tanto as diferenças quanto as semelhanças entre as teologias européia e norte-americana. Passou a haver, ainda, um profícuo diálogo entre teólogos de países socialistas e teólogos da libertação latino-americanos. Começaram a ocorrem, igualmente, reuniões entre cientistas sociais e teólogos da libertação, o que fez surgir uma nova corrente dentro da teologia da libertação, marcada pelas obras do economista leigo Franz Hinkelammert.

Segundo Dussel, o 2.º encontro de Detroit (agosto 1980) e o simpósio do CEHILA sobre história da teologia latino-americana (julho de 1980) que deu origem ao texto que serviu de base a este presente trabalho marcaram o fim dessa última fase analisada por ele. Para ele, a teologia da libertação na América Latina tem crescido devido a, principalmente, dois fatores, quais sejam a mobilização e organização crescentes do povo latino-americano (e.g., o movimento sandinista que depôs o ditador Somoza em 1979, na Nicarágua) e a “Igreja popular”, a qual cresce junto com esse povo, sofrendo e alegrando-se com ele. Os temas teológicos têm surgido, sobretudo, da reflexão da fé surgida a partir do encontro com a realidade popular. Conquanto o tema mais desenvolvido ainda seja a opressão, a espoliação e a exclusão do pobre, a eclesiologia e a cristologia também têm avançado. Em outro nível de progressos, a teologia da libertação tem se expandido em três frentes: a teologia feminista, a teologia negra e a teologia indígena. A teologia protestante apresentou avanços frutíferos nesse período.

(continua)

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