O texto é do Prof. Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro, disponível em: http://peroratio.blogspot.com.br/2010/11/2010570-ah-esses-tradutores-de-biblia.html
O título dado pelo ilustre teólogo à sua postagem é "Ah, esses tradutores de Bíblia...", mas não resisti à tentação de dar ao meu post - compartilhamento ipsis literis do texto do Osvaldo - o (sub-)título "Ruah-Exú" [que (não) me perdoem os estimados possíveis leitores cristãos ortodoxos...(rsrsrs)]*
2. A Bíblia está cheia - não é um nem são dois casos - de traduções mal feitas, sistematicamente repetidas, o que denuncia compromisso de censura ou absoluta impostura da parte das Editoras e dos tradutores. E isso é assim também porque não há nada mais herético do que uma Bíblia bem traduzida - explicar as boas traduções, dizer porque é assim, implica em revelar o funcionamento interno da "Teologia", das doutrinas, revelar que tudo não passa de cooptação da fé de povos originariamente não-cristãos, não-judeus, longos desenvolvimentos e transformações na história, ou seja, que doutrinas e Teologias, todas, sem exceção alguma, são coisas de homens e de mulheres, coisas que inventamos nesses dois milênios e meio de cristianismo/judaísmo - para o bem e para o mal, a fé é uma colagem de recortes.
3. Isso me remete, parenteticamente, a um parágrafo da monumental biografia que Losurdo escreveu de Nietzsche, que trancrevo: "conhecemos a violenta polêmica de Nietzsche contra a difusão da instrução que acabaria minando a necessária sujeição das vitimas sacrificiais da civilizaão. Também este tema está bem presente na história do pensamento moderno. Para Necker, 'a instrução é proibida aos homens nascidos sem propriedade'; seria uma catástrofe se eles desenvolvessem 'a faculdade de refletir sobre a origem das classes', da 'propriedade' e das 'instituições'; é preciso não perder de vista que a 'desigualdade dos conhecimentos' é 'necessária para a mnutenção de todas as desigualdades sociais; pôr em discussão 'a cegueira do povo' e promover junto dele 'o aumento das luzes' significaria fazer o ordenamento social vacilar'" (Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, Revan, 2010, p. 397). Sempre, sempre, absolutamente sempre, esconder...
4. Ontem dei uma "aula-teste". Quero aqui usar essa aula-teste. Quero falar de 1 Sm 16,14-23. Primeiro, conto a história que você, se conhece, é assim que conhece, principalmente se é evangélico e lê as versões Almeida. Eis a "história" - falsa, porque ela é um embuste, se assim contada: porque Saul fez alguma coisa desagradável ao Senhor, o espírito de Yahweh (espírito do Senhor) sai dele e passa a atormentá-lo um "espírito mau da parte do Senhor". Porque, quando assim possuído, Saul passa a ter ataques apopléticos, os servos que o cercam diagnosticam o caso: trata-se de um "espírito mau da parte de Deus" que atormenta o rei - se um homem tocar a lira, o espírito mau da parte de Deus vai embora, e Saul fica bem. Saul toma providências. Acaba contratando Davi, e, o verso 23 dá conta disso, toda vez que o "espírito mau da parte de Deus" atormenta Saul, Davi corre, toca a lira, e o espírito mau vai embora.
5. Assim contada (mas, repito, é falsa a história), estamos diante de nossa própria mitologia. Há espíritos maus. De vez em quando, Deus os usa, dando-lhes ordens, para atormentar alguns de seus desafetos. É alguma coisa bem próxima da demonologia que cerca o povo evangélico. Se alguém quer ver esses espíritos maus em ação, basta adentrar um templo neopentecostal, aproximar-se e contemplar a cena dantesca... O que a narrativa faz é transportar essa Teologia/demonologia para o texto. Mas ao custo de fraude.
6. Não é nada disso que o texto hebraico diz. Na aula de ontem, apresentada a alunos de gradução com pouquíssimos conhecimentos de hebraico, eles mesmos me ajudaram, durante o exercício, a fazer a tradução mais adequadamente. E deixem-me contar a história tal qual a Bíblia Hebraica a conta.
7. Porque Saul fizera algo que desagradara a Yahweh, Yahweh retira de Saul o seu "espírito" e imediatasmente, um espírito mau "desde junto de" Yahweh passa a atormentar o rei. Não se trata de um "espírito mau da parte de Yahweh". A construção hebraica "me'et" é a junção de duas preposições - "min" (que indica origem = "desde") e "'et" (que, nesse caso, significa "com", "junto de"): no conjunto, indica localidade de origem. Assim, o que o texto hebraico diz é que, tendo saído de Saul o espírito de Yahweh, um espírito mau que fica junto de Yahweh passou a atormentá-lo.
8. Vendo isso, os servos imediatamente interpretam a cena: caramba!, um (ou o) espírito de Deus mau atormenta o rei. Sim - "espírito de Deus mau". A tradução - nas Almeidas - "espírito mau da parte de Deus" - nos v. 15 e 16 é um crime, um erro grave. No hebraico - ruah 'elohim ra'ah - não permite, sob nenhuma prestidigitação, aquela tradução: literalmente, só cabe: espírito de Deus mau. Nos dois versos - 15 e 16. O que o texto hebraico dá a saber é que se acredita, lá e então, em espírito de Deus mau, assim como se acredita em espírito de Deus bom. Na verdade, os dois conceitos são intercambiáveis.
9. No verso 23, quando a história vai ser, finalmente fechada, Almeida, desgraçadamente, corrompe, de novo, o hebraico: já vimos, quando o espírito mau de Deus (tradução errada) atormenta Saul, Davi toca a harpa, e o espírito mau vai embora. Mas não é isso que o texto hebraico diz. No v. 23, o que está escrito é que, quando o espírito de Deus - sim, ruah 'elohim - atormenta Saul, Davi toca a harpa, e, então, o espírito mau se vai... Vês? Para o texto hebraico, espírito mau desde junto de Yahweh, espírito de Deus mau, espírito mau e espírito de Deus é tudo a mesma coisa - trata-se, sempre, do mesmo agente.
10. A Teologia que está aí parece ser a seguinte: quando Yahweh quer fazer algo bom, manda seu secretário, ruah (espírito, vento, sopro), que, fazendo algo de bom, é interpretado como espírito de Yahweh (ou espírito bom de Yahweh). Quando Yahweh quer fazer algo de ruim, manda o mesmo secretário, e, então, ele é descrito como espírito mau de Yahweh Yahweh não faz, manda fazer, e quem faz, é, sempre, ruah, o espírito, de modo que, se faz algo bom, é bom, se faz algo mau, é mau. Simples assim. Estamos numa época em que o povo acredita que Yahweh pode fazer o que é bom e o que é mau - e ninguém há que lhe possa pôr o dedo em riste...
11. Aí me vêm os tradutores, todos, santíssimos, nobilíssimos, zeladores da sã doutrina, vigilantes da heresia, e, para maior glória de Deus, fazem essa lambança, corrompem o texto bíblico, adulteram a tradução - desavergonhadamente, eu diria, porque, se alunos de graduação sabem traduzir, por que não eles? Sabem, sim, senhores, sabem: é que, alguns, sequer lêem, quando traduzem, mas meramente repetem a longa fila das versões, ao passo que outros, sabedores do que vai embaixo, adulteram programaticamente, porque são zelosos da fé...
12. E eu é que sou o herege! Que orgulho, então!
*para quem não entendeu o paralelo entre Ruah e Exú, consulte: http://www.orixas.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1&Itemid=57 e http://ocandomble.wordpress.com/os-orixas/exu/
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