"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

As parábolas sobre o reino de Deus em Lucas (1)

Handall Fabrício Martins


Lucas 6.20 – o reino de Deus é dos pobres (cf. Tg 2.5):

Segundo Joachim Jeremias, cabe ressaltar, primeiramente, que o reinado de Deus era o tema central da proclamação pública de Jesus, dada a frequência com que ocorre basileia nos ditos sinóticos de Jesus. A palavra hebraica correspondente ao grego basileia é malkut ou malkuta, que não se entende abstratamente, mas como em processo de realizar-se. Não é um conceito espacial nem estático, mas dinâmico: é a soberania real de Deus em ação, contra toda soberania humana real ou qualquer outra no céu e na terra. Sua marca principal é a de que Deus está realizando o ideal da justiça real, sempre ansiado, mas nunca cumprido; não uma aplicação imparcial do direito, mas a proteção aos desamparados, incluindo os pobres. Jesus empregou o termo no seu sentido escatológico, como de um evento futuro (Mt 6.10; Lc 11.2). Pode-se até dizer que, quando Jesus fala da basileia, ele pensa quase sempre ao mesmo tempo no juízo final que a precederá (Mc 9.43-48); designa o tempo da salvação, a consumação do mundo, a reconstituição da comunhão de vida entre Deus e o homem, a hora escatológica de Deus, a vitória de Deus.

Ao que parece, a oferta da salvação feita por Jesus aos pobres causou escândalo, e os que superam esse escândalo são bem-aventurados, o que frisa a importância da sentença “aos pobres é anunciada a boa nova” (cf. Lc 7.22,23). Eis o coração da pregação de Jesus, que se confirma na mesma declaração em forma de promessa, e que abre a proclamação escatológica das bem-aventuranças: “bem-aventurados os pobres” (Lc 6.20).

Mas quem são os pobres a quem Jesus trouxe as boas-novas?

Eram os “publicanos e pecadores”, ou “publicanos e prostitutas”, ou simplesmente “pecadores” (Mc 2.16; Mt 21.32; Lc 15.2). O desprezo subjacente nessas designações mostra que elas foram forjadas pelos adversários de Jesus. “Pecador” não designava simplesmente o que desprezava os mandamentos de Deus, mas também o que exercia uma profissão desprezada, seja por ela levar à imoralidade ou à desonestidade.

Os seguidores de Jesus também são chamados de “pequeninos” (Mc 9.42), ou “os menores” (Mt 25.40), ou “os singelos” (Mt 11.25), estes últimos contrapostos aos “prudentes e sábios”. Aqui, designam-se os discípulos de Jesus como homens que não tinham educação religiosa, a única possível no judaísmo palestinense da época, o que os fazia ser considerados ignorantes, atrasados e mesmo sem piedade. Novamente o desprezo associado a esses termos faz supor que eles tenham sido cunhados pelos adversários de Jesus. Em suma, os discípulos de Jesus eram os difamados e ignorantes, aos quais, segundo as convenções da época, estava fechado o acesso à salvação. Lucas refere-se a pobres de fato, mas não simplesmente aos sem posses, mas àqueles que por serem discípulos de Jesus passam por privações e perseguições.

Mas como Jesus teria empregado o termo? A quem se referia?

Mateus 11.5 é citação de Isaías 61.1-3, entendida como palavra profética, onde o conceito “pobres” é explicado por uma série de expressões paralelas: “os de coração quebrantado”, “os que se acham presos (à culpa?)”, “os acorrentados”, “os que estão tristes”, “os que estão com o espírito angustiado”. Os “pobres”, portanto, são os oprimidos em sentido muito geral: são os opressos, os que não podem se defender, os desesperados, os sem perspectiva de salvação, os que dependem inteiramente de Deus, os necessitados, os que passam fome e sede, os nus e os estrangeiros, os doentes e os prisioneiros (Mt 25.31-46). Também abarca os que choram, os trabalhadores sujeitos a trabalho pesado, os que carregam fardos, os últimos, os singelos, os perdidos, os pecadores. Lucas enfatiza a opressão externa, ao passo que Mateus frisa a angústia interna. Jesus olha com infinita misericórdia para esses mendigos perante Deus.

Ao sentar à mesa com “pecadores”, Jesus não só inclui os excluídos, como também corrobora, com seus atos (de Jesus), e de maneira impressionante, o que sua palavra já proclamava: o anúncio do perdão, a expressão mais palpável da mensagem do amor redentor de Deus. São refeições escatológicas, celebrações antecipatórias do banquete salvífico do fim dos tempos (Mt 8.11). Jesus também anuncia o perdão ao hospedar-se na casa de um publicano (Lc 19.5). A salvação é destinada aos pecadores, não aos justos. É nesse sentido que devemos entender Mateus 21.31, que diz que publicanos e prostitutas “precederão” os piedosos no reinado de Deus, ou seja, os piedosos (presunçosos) ficarão de fora. O fim dos tempos trará uma inversão das relações, evidenciando a ilimitada soberania e misericórdia de Deus. Essa bondade além de toda compreensão é júbilo e alegria para os pobres: eles recebem uma riqueza em vista da qual todos os demais valores se esvaem (Mt 13.44-46); vivenciam algo que jamais esperavam – Deus os acolhe, ainda que estejam de mãos vazias. O próprio Jesus se rejubila com eles (Mt 11.25).

O meio ambiente de Jesus baseava o relacionamento com Deus no comportamento moral do ser humano. Na medida em que o Evangelho não faz isso, está mexendo nos fundamentos da religião. Daí o escândalo causado por Jesus em seus opositores. Ora, somente os carregados de culpa (cônscios disso) é que podem avaliar o que significa remissão da culpa: sua gratidão é sem limites (Lc 7.36-50). Diferente é a atitude dos “piedosos”: aos olhos de Jesus, nada separa tanto o ser humano de Deus quanto uma piedade segura de si mesma. Contudo, na esfera do direito divino, os pobres não são só objeto do amor, mas eles próprios são confrontados com a exigência.

A proclamação de Jesus aos pobres é no sentido de que não é mais tempo de andar triste e jejuar; agora é o tempo da alegria como a que se revela num casamento (Mc 2.18-22).


(continua)

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