"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Por UMA ciência das religiões? (final)

Handall Fabrício Martins

“Religiologia”?
Feitas essas observações, voltemos à questão que nos motivou. Qual a viabilidade de se esposar uma ciência das religiões, uma “religiologia”? E, em sendo viável, qual seria a relevância ou importância desse saber emancipado?
Cumpre lembrar que não houve mudanças nas condições objetivas da vida. As condições subjetivas é que mudaram. Não obstante, “[...] ‘o crente que está em comunhão com o seu deus [...] não é apenas um homem que vê novas verdades que o não-crente ignora [...]. Ele sente dentro de si mais força, seja para suportar os sofrimentos da existência, seja para conquistá-los’[...]” (DURKHEIM, apud ALVES, 1984, p. 153, 154).
Também não se pode negar o surgimento de um novo fervor religioso, mesmo que assumindo formas inéditas e até inesperadas. A modernidade e o processo de secularização da consciência, pelo menos no que toca à religião, parecem ter saturado. Os antigos deuses ou envelheceram ou morreram; outros ainda nem nasceram. Contrariamente a todos os vaticínios e expectativas, a religião está aí. E o mundo, ora “desencantado”, passa por um “reencantamento”. Mas o imprevisto é que esse novo fervor religioso tem se manifestado justamente onde a secularização ocorreu mais fortemente:
[...] Enquanto o homem continua, por força da rotina e da coerção social, a reverenciar os deuses que a sociedade entronizou, mas que perderam o poder para simbolizar e expressar suas vivências emocionais, ao mesmo tempo ele busca outros deuses, talvez menos respeitáveis, mas que de alguma forma corporifiquem as suas experiências vividas (ALVES, 1984, p.41).

Peter Berger, num momento em que esse “reencantamento” era apenas uma possibilidade, um boato – um “rumor de anjos”, como ele descreve –, afirma que esse retorno ao sobrenatural possibilitaria uma nova e melhor percepção da realidade, uma mais cuidadosa atenção a cada ação a que fôssemos convocados a realizar nos dramas cotidianos da vida humana, uma “preocupação infinita” com a agenda da humanidade.
Ora, segundo ele, a religião tem um benefício moral que permite confrontar a época em que se vive segundo uma perspectiva que transcende a própria época, relativizando-a. E isso teria um significado ético e político relevante, haja vista que todos os acontecimentos históricos são “penúltimos”, e que seu significado último repousa numa realidade transcendente.
Todavia, ele adverte que convém que todo aquele que se acercar da religião, interessado em sua possível verdade mais do que em suas manifestações sociais, mantenha certa indiferença com relação a prognósticos empíricos. E ele se justifica dizendo que mesmo o juízo histórico sobre a verdade e a transcendência é contingente.
E quanto aos questionamentos
[...] “Mas, e Deus, existe? A vida tem sentido? O universo tem uma face? A morte é minha irmã?” Ao que a alma religiosa só poderia responder: “Não sei. Mas eu desejo ardentemente que assim seja. E me lanço inteira. Porque é mais belo o risco ao lado da esperança que a certeza ao lado de um universo frio e sem sentido...” (ALVES, 2006, p.126, grifo do autor)?

Essas são indagações filosóficas ontológicas do ser humano. A religião apenas tenta respondê-las na medida em que constrói um universo linguístico significativo, um discurso plausível que dê sentido à existência. Eis o enigma!
Assim, partindo das palavras de Durkheim – citadas por Alves no início deste texto –, entende-se não somente a importância da religião, como também a relevância do estudo sistemático, científico, acadêmico do fenômeno religioso. Se ainda parece inviável um saber autônomo que se ocupe do assunto, tal não se pode constituir em obstáculo para se continuar buscando definir o estatuto epistemológico de uma ciência das religiões (“religiologia?”).
Senão, vislumbremos a trajetória da sociologia, e.g., enquanto ciência stricto sensu: seu caráter recente e inimaginável séculos atrás pode servir-nos de encorajamento nessa importante empreitada de definição de uma “religiologia”.
Por ora, contentemo-nos em continuar nossa aproximação do fenômeno religioso com as ferramentas de que dispomos, mas sem desistir da empresa de formular um saber emancipado sobre a religião, haja vista as especificidades inerentes a um tema que, de tão complexo, continua a fascinar estudiosos de vários campos do saber humano: a relação do ser humano com seus deuses.

REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. O enigma da religião. Campinas: Papirus, 1984.
____________. O que é religião? 7 ed. São Paulo: Loyola, 1999.
BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 5 ed. São Paulo: Paulus, 2004.
_______________. Um rumor de anjos. A sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. 2 ed. revista. Petrópolis: Vozes, 1996.
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1976.
BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal e EST, 2003.
FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1988.
MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre secularização e dessecularização. São Paulo: Paulinas, 1995.
MONDIN, Battista. Curso de filosofia. Volume 2. 10 ed. São Paulo: Paulus, 2006
_______________. Curso de filosofia. Volume 3. 9 ed. São Paulo: Paulus, 2005.
_______________. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. 16 ed. São Paulo: Paulus, 2006.
TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. 3 ed. São Leopoldo: Sinodal, 1985.
VELASQUES FILHO, Prócoro. Uma ética para nossos dias: origem e evolução do pensamento ético de Dietrich Bonhoeffer. São Bernardo do Campo: EDITEO, 1976.
ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. 5 ed. São Paulo: Paulus, 2004.

2 comentários:

  1. Execelente postagem. Desde a igreja primitiva a religião tem se trnsvestido daquilo que lhe é delineado pela cultura e a vivencia da sociedade. Paulo por exemplo herdou, digo, copiou muito da roupagem do helenismo e inseriu na sua teologia, às vezes confundindo e misturando paganismo e crenças.

    ResponderExcluir