"Falar com 'Deus' é oração (?!); já ouvi-lo responder... é esquizofrenia."

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Por UMA ciência das religiões? (parte 2)

Handall Fabrício Martins

“Morte de Deus”?
O período da história da Europa comumente conhecido como “Renascimento” ou “Renascença”, grosso modo, pode ser caracterizado por diversas transformações em várias áreas da vida humana, e que teve como estopim o resgate da cultura greco-romana, apresentando como duas de suas principais consequências o humanismo e o iluminismo. Este, entre outras coisas, produziu um otimismo e um grande entusiasmo quanto ao progresso ilimitado do ser humano, os quais começaram a se apoderar do ocidente, sobretudo a Europa, em decorrência dos avanços científicos alcançados desde a libertação do homem ocidental de sua subordinação em relação à Igreja. Tal ideologia chegou ao seu clímax na chamada belle époque[1].
[...] O movimento em direção à autonomia humana (refiro-me à descoberta das leis segundo as quais o mundo vive e dá conta de si mesmo nas áreas da ciência, da sociedade e do Estado, da arte, da ética e da religião) [...] chegou a uma certa completeza na nossa época. O ser humano aprendeu a dar conta de si mesmo em todas as questões importantes sem apelar para a “hipótese de trabalho Deus”. [...] Desde cerca de 100 anos isso vale, de modo crescente, também para as questões religiosas; fica evidente que tudo também funciona sem “Deus”, e tão bem quanto antes. Assim como no campo científico, também na esfera humana em geral “Deus” está sendo afastado cada vez mais da vida; ele está perdendo terreno [...] (BONHOEFFER, 2003, p.434-435).

O programa bonhoefferiano tencionava, por meio de sua interpretação secular dos conceitos bíblicos, aproximar o cristianismo da vida e da realidade do mundo. Bonhoeffer afirmava que a religiosidade pietista elimina Cristo do centro da existência humana, pois tal religiosidade teria o intuito de tornar a vida mais suportável, além de recompensar os homens piedosos, o que seria um equívoco, pois o pietismo não tem o poder de dar ao homem a segurança que ele busca, e nem de justificá-lo diante de Deus. Isso só Deus mesmo pode fazer. Por isso mesmo, a religiosidade pietista, na medida em que o conhecimento e a capacidade do ser humano aumentassem – levando este à maioridade –, tenderia a desaparecer.  
Além disso, o pietismo seria uma espécie de metafísica, pois se trata de uma cosmovisão que oferece a suposta complementaridade de que o mundo necessita. Deus seria mesmo a superestrutura dos seres que ele atrai a si, propiciando uma fuga da realidade, e fazendo com que esta pareça um espelho do sobrenatural. Cria-se, então, um dualismo alienante, que superpõe categorias distintas e separadas: a da matéria, da realidade e do ser humano e a do espírito, do paraíso e de Deus. Assim, exige-se que a realidade seja complementada pelo sobrenatural.
Outros aspectos problemáticos do pietismo, segundo a análise bonhoefferiana, seriam: o cultivo de práticas oriundas de uma espiritualidade individualista, introvertida e ascética, o que também levaria o ser humano a evadir-se da realidade, refugiando-se em si mesmo; a exigência, sempre presente, de um “a priori religioso”, o qual, segundo Bonhoeffer, não teria mais significado para o homem moderno, visto tratar-se apenas de uma forma de expressão de um homem dependente da história e da natureza, mas que não apreende os fenômenos que o cercam; necessidade de um Deus “tapa-buracos”, à semelhança do deus ex machina[2], mobilizado pelas pessoas como a solução aparente de questões insolúveis, quando o conhecimento humano chega ao limite ou quando as forças da pessoa se esgotam (concepção que, necessariamente, teria um término quando o ser humano ampliasse um pouco mais seus limites, tornando o deus ex machina, assim, supérfluo). 
Portanto, o que Bonhoeffer condenou na religiosidade pietista foi sua necessidade de primeiro convencer o homem de sua miséria, fraqueza e limites para, então, lhe apresentar o seu remédio. Inicialmente, enferma-se o homem, a fim de curá-lo logo em seguida. O remédio? Deus. Mas um Deus que se torna propriedade do homem e que está à disposição deste quando e como este quiser. A fim de se resgatar o que realmente importa – a fé –, é necessário rejeitar a religiosidade pietista. Todavia, faz-se mister ressaltar que o “mundo adulto”, preconizado e almejado por Bonhoeffer, não se refere a um mundo plenamente responsável, maduro e acabado. Não. Tampouco diz respeito a um conceito temporal-histórico, psicológico ou jurídico. Trata-se, antes, de um conceito teológico e cristológico.
O fato é que o mundo não quer nem precisa da tutela da religiosidade pietista, pois ela, com sua visão tradicionalista do mundo, atrapalha o progresso, devendo ser rejeitada. Deve-se, então, afastar Deus como “hipótese de trabalho”, pressuposto, motivação e guia das atividades do homem, deixando-o de lado, e viver no mundo como se Deus não existisse, visto que esse Deus se deixa desalojar do mundo, tornando-se impotente e fraco. É viver da fraqueza e do abandono de Deus. Entretanto, como Bonhoeffer sempre salienta, o mundo necessita, sim, de Cristo, pois é somente por ele que a humanidade poderá tornar-se adulta e responsável diante de Deus.
Nada obstante, Bonhoeffer, diversamente do que pretendia, teve seu nome associado à “teologia da morte de Deus” (apesar da aparente contradição inerente: um discurso cujo ponto de partida é a ausência justamente do substantivo que lhe dava conteúdo). De fato, atribuíram a ele a paternidade dessa nova elaboração teológica.
Mas, como é possível falar de “morte de Deus”? Como matar “o criador de todas as coisas” (segundo a concepção cristã)? Como pode a criatura voltar-se contra seu criador? Na linguagem bíblica: “Acaso, dirá o barro ao que lhe dá forma: Que fazes?” (Is 45.9) ou: “Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim?” (Rm 9.20). Poder-se-ia falar da “morte de Deus” como o epitáfio de um ser eterno? Não é exatamente isso. Trata-se, na verdade, da
[...] constatação de que as estruturas de pensamento e de linguagem que o teísmo oferecia entraram em colapso. Chegou ao fim uma certa visão do universo. Uma nova maneira de pensar a vida, de encarar os seus problemas – e consequentemente de falar – está surgindo, o que contradiz, de modo radical, a forma velha (ALVES, 1984, p.60).

Em outras palavras, não foi Deus quem morreu, mas o homem pré-moderno, que um dia valeu-se dessa palavra – Deus – para orientar-se no mundo. A propósito disso, Rubem Alves, em “O enigma da religião”, põe como subtítulo do capítulo nomeado “A morte de Deus” o seguinte: “Comentários à autobiografia do homem”. De qualquer maneira, não parece supérfluo lembrar, aqui, como Nietzsche, que, na verdade, não existem fatos, mas, apenas e tão somente interpretações. Dito isso, prosseguimos.
Ora, já Kant proclamara o surgimento de um novo homem, livre de quaisquer tutelas exteriores ou de forças heteronômicas. Da heteronomia esse homem passa à autonomia, à emancipação pela razão. Um mundo novo se abre, como permissão e como convite, a fim de que esse novo homem possa conhecer e dominar. De santo o homem se transforma em cientista e, com isso, Deus entra em agonia de morte. De categoria ontológica que em tudo se fazia presente, imanente e transcendentalmente, na terra e no céu, Deus, de repente, fica desalojado: primeiro, banido da terra para o céu; posteriormente, até este se lhe torna inóspito. Criou-se um “problema habitacional” para Deus, o qual nunca mais teve morada certa. O ser humano, um dia expulso do paraíso, agora se vinga e expulsa Deus da realidade objetiva. O lugar de Deus passa a ser às margens da existência.
Marx tratava a religião com desdém, com certa indiferença, convicto de que ela não fazia diferença alguma em relação aos problemas de sua época. Ele via a religião como um sintoma, não como causa. Para ele, a religião era uma simples emanação da condição material do ser humano. O homem é que faz a religião, não o contrário. Trata-se de um suspiro do oprimido em meio ao seu sofrimento, um balbucio: “é a vontade de Deus”. Daí, a religião se torna um bálsamo provisório para uma dor que ela é incapaz de curar, pois justifica e não modifica a realidade, propondo uma solução para além da história, uma libertação espiritual; imaginária e ilusória, portanto. É por isso que Marx disse que ela é “o ópio do povo”. Entretanto, deve-se entender isso como a manifestação da humanidade sofredora em busca de consolo, fenômeno que, segundo ele, estava fadado ao desaparecimento tão logo se modificassem as relações de produção, pois, mudando estas, a opressão econômica cessaria e a religião se faria desnecessária. Numa sociedade sem classes, a religião estaria definitivamente superada. Em Marx, a questão da religião se resolve na política.
Para Nietzsche, a religião é destruidora de tudo quanto há de nobre e de alegre na vida humana, transformando o ser humano em covarde, fraco e escravo. A “morte de Deus” significaria a liberdade e a emancipação do homem. A “morte de Deus” é a aurora da nova humanidade. O interessante é notar que, em Nietzsche, a fórmula “Deus está morto” é uma decisão existencial do próprio homem. Ele não diz: “Deus não existe”, ou: “não creio em Deus”. Antes, afirma: “quero que Deus não exista”. Deus, para Nietzsche, é um pesadelo que leva a uma fuga da realidade e da agenda humana. E, estando Deus “morto”, o que ocupará o seu lugar? O homem que acredita em si mesmo, e que diz a si mesmo: “quero ser Deus”. É o Super-homem anunciado por Zaratustra. O interior do ser humano é divino, e dele brotam todos os outros “eu quero”. Ora, se o homem quer ser Deus, não quer que haja outro Deus. Assim, celebra-se a “morte de Deus”, que resulta da dialética entre esses “eu quero” e o “eu quero ser Deus”. Quando essas duas dimensões do mesmo ser humano se separam dualisticamente, aí, então, surge a religião. Nietzsche sacraliza a realidade, pela religiosa afirmação da vida, da vida toda, nem negada, nem diminuída.
Já Freud entendeu a religião como uma ilusão, resquício de uma mentalidade primitiva e, de certa forma, irracional, em que o ser humano achava que podia moldar o mundo segundo seus próprios desejos, sublimar seus instintos, conforme o princípio do prazer. Seria uma forma de infantilismo, de recusa em amadurecer e aceitar a realidade e a dureza da vida, trocando o “real” pelo “imaginário”. Desse modo, a religião é explicada psicologicamente como uma neurose, na qual acontece uma projeção cósmica da ideia psíquica de pai (= “Deus”), e que só poderia ser curada pela ciência, a qual exorcizaria os terrores da natureza, reconciliando o ser humano com a realidade – sobretudo a da morte –, e compensando-o pelo sofrimento imposto por uma vida civilizada em comum. Em Freud, o problema da religião se resolve pela análise.
Quanto a essa “fé na ciência”, Tillich diz que:
[...] Quando [...] representantes da física moderna querem atribuir a realidade inteira ao movimento mecânico de minúsculas moléculas, negando com isso a realidade da própria vida, então eles manifestam a sua fé, tanto subjetiva como objetivamente. Subjetivamente a ciência é, então, para eles aquilo que os toca incondicionalmente e pelo qual eles estão dispostos a sacrificar tudo, também a vida, se necessário for. Objetivamente eles criam um símbolo demoníaco do incondicional, a saber, um universo em que tudo, também a sua paixão científica, é devorado por um mecanismo sem sentido [...] (1985, p.54, 55).

Disso tudo, conjecturamos que o que o iluminismo fez com relação à religião foi, grosso modo, substituí-la pela ciência. O mundo foi “desencantado”. Da fé em Deus passou-se à fé na ciência. Esta passou a desempenhar, em grande parte, as funções que antes eram exercidas pela religião tradicional. Parece que a ciência – num mundo onde as religiões tradicionais perderam a credibilidade – constituiu-se numa “alternativa” ou “equivalente funcional” da religião.    


[1] Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (versão eletrônica), fase de euforia e despreocupação vivida especialmente na Europa, entre 1871, final da guerra franco-prussiana, e 1914, ano do início da Primeira Guerra Mundial, caracterizada por grande produção artística, literária e bom desenvolvimento tecnológico.”

[2] Na Antiguidade greco-latina, recurso dramatúrgico que consistia originariamente na descida em cena de um deus cuja missão era dar uma solução arbitrária a um impasse vivido pelos personagens (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, versão eletrônica).


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